Sobre o conto

Esse é o quarto conto do projeto #UmSábadoUmConto (clique para conhecer e ver os outros)

Durante a semana os leitores votam em estilo, público e época. O autor só pode saber o resultado às 8h de sábado e tem até meio dia para terminar o conto (esse foi até as 13h).

Cada conto é escrito com uma processo criativo diferente (veja no final).

O que você vê a seguir é o conto com a mínima revisão. Ele pode ser visto em estado bruto no Google Docs.

O Conto

Fevereiro. 1899. Calor surreal. As roupas colam na pele apesar do vento que sobe o morro da Providência vindo da cidade mais abaixo trazendo cheiros e poucas vozes. São duas da tarde e o sol parece mais cruel do que ao meio dia.

José, Carlos, Jorge e o Coronel estão empenhados em construir uma casa. Eles trabalham em equipe desde que sobreviveram à guerra. Confiam nos outros mais do que neles mesmos porque um homem muitas vezes trai a si mesmo entregando-se à bebida, ao jogo ou à mulher errada.

Coronel é apenas um apelido pois Josué é aquele homem sem medo, o que sempre mantém a cabeça no lugar e vê o melhor caminho a tomar, a melhor estratégia a seguir. Ele não se entrega às emoções e sabe a hora de se esconder e a de contra-atacar.

Mas agora eles já não precisam se esconder ou contra-atacar nada. A guerra acabou e deixaram de servir. Eles sabem tirar a vida de uma pessoa, não sabem como vender produtos em uma quitanda, nem como arar a terra ou colher café, mas o café também já não é como antes e parece que é na indústria que estará o futuro. Foi o Coronel que disse. Ele sabe das coisas.

Agora eles precisam de casas. De tetos onde possam se proteger das chuvas violentas do Rio de Janeiro.

Os vinte mil soldados vindos de Canudos tomaram a providência de se instalar naquele morro onde já havia outros moradores vindos de cortiços destruídos pelo prefeito anos antes. A partir daí o morro passou a ser conhecido como morro da Providência.

Os quatro amigos chegaram pouco depois disso pois antes tentaram se estabelecer em outras regiões percebendo, enfim, que a capital lhes proporcionaria mais oportunidades.

Essa era a última casa que eles estavam construindo. Finalmente o Coronel teria um lugar dele pois insistiu que construíssem as casas dos amigos antes, afinal eram mais jovens e já vinham se engraçando com boas moças enquanto ele, bode velho, já tivera sua dose de casamento para a vida. Ele deu azar, diziam os outros, mas o fato é que ele provavelmente passaria o resto da vida sozinho dedicando-se aos amigos.

Uma semana depois a casa estava de pé, os quatro amigos tinham onde se abrigar do tempo… onde construir famílias.

Toda sexta feira eles se reúnem na casa do Coronel para falar dos velhos tempos e jogar cartas. Sem dinheiro, pois jogo a dinheiro destrói amizades e manda homens para o inferno.

Já é tarde da noite quando voltam para suas casas, quase onze horas. Os ruídos noturnos são estranhos… Entre os gemidos abafados de casais em suas casas há estalos seguidos de outros tipos de gemidos reprimidos por sussurros selvagens de homens que odeiam mulheres, mas as querem assim mesmo. Há choros de bebês dessas e de outras casas e, vez por outra, pode-se ver os olhos assustados de crianças engolindo o choro enquanto se escondem nas sombras.

Mesmo um soldado que já passou as noites entre os ruídos do mato, certos de que estão cercados por caaporas, mulas sem cabeça e sacis pererês sente arrepios quando percebe outras coisas entre as casas que não conseguem descrever. Não enxergam e nem ouvem, eles percebem.

Ora é como se o chão tremesse com passos pesados próximos. Ora é um vento que parece soprado de narinas quentes e apodrecidas.

Foi Josué, o Coronel, que falou nisso uma noite; em como parecia que o chão do morro ou as casas ao redor deles, transformavam os seres do mato em outras coisas na cidade grande. Coisas mais raivosas, coisas com intenções mais… cruéis.

Os outros não falariam no assunto com medo de parecerem tolos supersticiosos, mas o Coronel podia. Ele não falava com medo, falava com a sabedoria de quem sabe que há perigos que não percebemos racionalmente, que só podem ser percebidos nos pelos arrepiados do braço.

Poucos anos mais tarde o morro da Providência seria um dos lugares mais violentos do país, mas os quatro já não estariam lá.

A Terra tem espíritos, os quatro sabiam disso, os quatro tinham vivido semanas seguidas no meio do mato e sabiam.

Quando os homens começam a lutar, derrubar árvores, cortar morros e manchar o chão com sangue e fuligem esses espíritos se irritam ou se transformam. Um homem sábio entende que deve prestar as homenagens a esses espíritos.

Os negros que estavam no morro antes deles entendem isso melhor que os brancos e tratam de agradar seus espíritos lhes prestando homenagens e entregando oferendas.

José, Carlos, Jorge e o Coronel não se entregam a essas crendices, são homens de Deus, mas não são tolos de ignorar os outros deuses que nos cercam. Já tinham visto o bastante para saber que cada um tem seu Deus e alguns lugares tem seus próprios Deuses.

Durante os carteados não deixavam de entregar o primeiro gole de cada copo ao santo deixando cair no chão de terra batida. Ao ir para casa faziam o sinal da cruz ao sair e ao entrar. Batiam a porta três vezes para espantar qualquer espírito maligno que os tivesse seguido e faziam suas orações ao dormir e ao acordar.

A sombra

Foi numa noite de inverno, se é que existe inverno no Rio de Janeiro. Era o ano de 1905 e os barracos de Carlos, Jorge, do Coronel e de José já apresentavam tábuas enegrecidas pela umidade e pelo tempo, as paredes já mostravam as marcas das histórias vividas ali. Das pessoas que passaram por suas vidas. Outros amigos perdidos em suas jornadas pela vida, alguns que se acharam ali graças à ajuda dos quatro amigos.

José e Jorge se casaram e já tinham crianças, um teve uma menina o outro um menino. Ainda frágeis em seus 2 ou 3 anos de idade.

As noites de carteado nas sextas continuam, mas agora tinham novas histórias, novos sonhos e projetos. Cada um deles estava aprendendo uma nova profissão. Nada demais, posições na indústria ou no comércio como todos os outros.

Foi numa dessas noites, já bem depois das 11 horas, que José acordou sobressaltado sem saber por quê. Se esgueirou sob a janela e olhou para fora a tempo de ver uma sombra se afastando da sua casa e passando por trás da casa do Coronel logo à frente.

Agora que ele estava acordado percebeu que a razão de se levantar repentinamente foram batidas rápidas, mas firmes, em sua janela. Gabriela, sua esposa dormia profundamente e o bebê também.

Ele saiu de casa descalço sentindo a terra sob os pés. O Cruzeiro do Sul ia alto no céu o que significava que o alvorecer já devia estar próximo. Quem estaria se esgueirando entre as casas?

Cautelosamente ele dá a volta em seu pequeno barraco até que encontra, sob a janela onde tinha visto a sombra, uma caixa de metal pesada.

Ele a leva e coloca sob a cama. Nem pensa em abrí-la, mas percebe que está lacrada e que tem uma fechadura. Amanhã é outro dia e ele poderá falar com os amigos.

É claro que ele não poderia ter visto que a sombra entrou pela janela do Coronel porque ela ficava do outro lado, virada para um espaço onde não havia mais casas e que, meia hora depois, o Coronel saiu carregando algo grande e pesado nas costas e sombra nunca chegou a sair da casa dele.

Duas horas depois o céu está azul como se vivessem no paraíso, mas para José parecia meio obscuro, como se houvessem nuvens fazendo sombra.

Ele teria que ir ao trabalho, mas não podia passar o dia todo sem falar no assunto. Se arrumou mais cedo que de costume, não tinha dormido depois de pegar a caixa de qualquer forma, então foi só esperar um pouco para não despertar suspeitas na mulher.

Um homem não divide seus problemas com sua mulher, seria crueldade além de fraqueza. É o homem que tem força e recursos para resolver as coisas, o que uma mulher faria? Sairia entre os barracos reunindo outras mulheres para tomar alguma iniciativa? Todos ririam. Elas mesmas riram ao se olharem.

Não, ele teria que falar com os amigos antes de ir trabalhar. Jorge é quem reclamaria mais pois costumava dormir até mais tarde nos sábados já que não trabalhava nos fins de semana, os outros acordavam junto com o Sol também para correr atrás da vida.

De qualquer forma não seria um problema dele já que, é óbvio, o Coronel seria o primeiro que ele iria procurar.

O Coronel atendeu a porta totalmente desperto. Olhou para um lado, depois para o outro e deixou o amigo entrar. Jorge e Carlos já estavam lá dentro. O Jorge? Então algo aconteceu a todos naquela noite.

– Você demorou, né José? – O sorriso do Jorge era largo e cheio de dentes brancos, mas sua testa estava ligeiramente franzida e seus olhos refletiam preocupação.

– O que te deram, José? – Carlos parecia assustado, não ria. Ele sempre sobreviveu graças a esse medo, era o mais cuidadoso e melhor em se esconder e só não dava ouvidos ao medo quando um amigo estava em perigo, nesse caso ele virava uma verdadeira onça e se atirava contra o inimigo sem pensar.

O Coronel sentou-se no estrado da cama, alguma coisa tinha acontecido com seu colchão feito de palha, e olhou para os três.

– Uma caixa. O José recebeu uma caixa. Ela está em segurança, José?

– Está sim Coronel! Coloquei atrás da madeira que uso no fogão, está bem coberta e ninguém vai mexer ali tão cedo até porque já coloquei uns troncos novos no fogão.

– O negócio é o seguinte… Já falei para os outros. O Carlos veio para cá ainda no meio da madrugada já que mora sozinho e a esposa do Jorge acordou junto com ele quando a sombra passou então não havia sentido em esconder, mas somente nós podemos saber o que está acontecendo e, lamento, não podemos saber de tudo.

Os três pares de olhos estão voltados para ele refletindo a aceitação. O que o Coronel disser é a lei. Eles só queriam poder carregar o fardo, seja ele qual for, ajudando-o com o peso.

– Eu não sei o que está na caixa José e você não pode saber o que a sombra trouxe para os outros. Você ficará com ela até chegar a hora e um de nós lhe dirá qual é a hora. Nenhum de você pode saber o que eu recebi. É também para a segurança de vocês. Hoje, esse momento, é a última vez que falaremos nisso até que chegue a hora e isso pode demorar anos. Se acontecer alguma coisa com algum de nós temos que ter um plano de reserva, entenderam? Vocês devem escrever em um papel onde está o que lhes foi entregue e deixar com alguém de confiança dizendo para só olhar se algo acontecer a vocês. É claro que não pode ser alguém da família. Todos nós temos colegas em quem podemos confiar além de nós, pelo menos para essa tarefa.

Os três se foram juntos. O Coronel saiu quinze minutos mais tarde, fechou a porta e voltou uma hora depois carregando compras.

A esposa do Jorge nunca mais perguntou sobre aquela noite e a do José, mesmo tenho visto que ele movia uma caixa pesada para um lado ou para o outro de tempos em tempos até que acaba por fazer um pequeno alçapão que é mais um buraco para ela. Ela lhe pergunta apenas uma vez o que era aquilo e aceitou calmamente “esquece que essa caixa existe, tá bom Gabriela?” como resposta suficiente.

As únicas vezes que quatro amigos quase falam daquela noite são nas noites de carteado nas sextas-feiras. Eles se entreolham, alguém chega a abrir a boca como se fosse dizer algo, mas a fecha de novo com um estalo dos dentes ou fala sobre outra coisa como “essas cartas estão tão velhas e marcadas que eu já sei a mão toda do Coronel” e todos caem na gargalhada porque é verdade e não pensam mais na noite e na sombra.

Na noite da sombra Carlos acordou com uma mão forte segurando sua boca. Ele tentou levantar, mas não conseguiu, quem o segurava era forte como o diabo!

Ele arregalou os olhos tentando ver seu inimigo, mas ele estava envolto em sobras, estava escuro e a luz que vinha da lua não chegava ao rosto do homem mesmo quando ele se inclinou até seu ouvido e uma voz desconhecida lhe disse para não ter medo, que um amigo o tinha enviado e que ele devia apenas decorar uma frase. Um dia ele saberia o que fazer com ela. O homem repetiu a frase três vezes e depois mais duas. Mesmo no meio das sombras Carlos finalmente conseguiu ver os olhos do homem encarando-o enquanto perguntava se ele tinha entendido, se ia se lembrar e gravar na alma o que ele tinha dito. Que outra alma, uma alma inocente, dependia disso. Carlos assentiu e a sombra sumiu. Talvez ela tenha apenas partido rapidamente, mas, em sua memória, ele lembra dela ter sumido.

Foi a esposa do Jorge que acordou antes dele. Apertando com firmeza seu braço, Matilda era forte como um cavalo, os olhos arregalados e sussurrando em seu ouvido “acorda. tem alguém”. O barraco dos dois tem dois cômodos: o quarto e a sala e é na sala que Jorge vê uma sombra perto da porta.

– Lamento que vocês tenham acordado. Não se preocupem. Sou apenas um mensageiro. Tenho que falar com você. Sozinho, Jorge.

Vendo que Jorge carrega uma barra de ferro na mão esquerda (ele é canhoto, coisa que esconde de todos durante o dia por via das dúvidas, mas agora ele precisa do máximo da sua habilidade para defender sua família) a sombra coloca uma coisa sobre a mesa, se vira lentamente e, antes que Jorge possa fazer alguma coisa, desliza velozmente pela porta desaparecendo na noite profunda.

Em cima da mesa Jorge encontra um saco de couro. Dentro dele há uma chave. Somente uma chave.

Carlos

“A vida é dos solitários” é o chavão do Carlos. Por solitário ele quer dizer “não casado”.

Ele e o Coronel foram os únicos a nào casar. O Coronel porque nunca mais amaria outra mulher além da Josefina, que se foi e ele porque simplesmente não sentia vontade. Não queria ter filhos, muito menos esposa e nem era muito de correr atrás de rabos de saia, era “bicho solto”.

Trabalhava pesado para melhorar de vida. Muito cedo os quatro perceberam que ali no Morro da Providência não ia dar para ficar. O pessoal que tinha nascido ou tido filhos lá acabava se afeiçoando, afinal a gente segue as nossas memórias, mas ele e os outros tinham outros motivos. Achavam que não era boa ideia ficar lá com os segredos que a sombra lhes havia confiado.

Ele estudou e encontrou um emprego nos correios. Os anos passavam, mas não tinha uma noite em que ele não pensasse na frase que tinha recebido. Ele a adicionou às orações diárias para não esquecer. Estava gravada em sua pele como uma marca de gado.

Acabou se mudando para uma rua no centro da cidade e disse para os outros que a parte confiada a ele estaria numa caixa dos correios, um pequeno truque que ele tinha bolado. Mesmo que ele desaparecesse um deles poderia ir lá e pegar a coisa apenas entregando um número.

Onze anos se passariam até que ele tivesse que agir.

Jorge

Ele nunca soube que o José tinha uma caixa, uma vez por mês ele pegava a chave e olhava para ela pensando o que abriria, pensando se estava bem guardada, mas não tão bem guardada que ninguém pudesse achá-la caso ele morresse. Sua esposa n˜o sabia da existência daquela chave, era como se fosse uma arma escondida que a família não podia saber onde estava para evitar um acidente.

Ele acabou se envolvendo com música, sempre foi bom de rimas. Não era rico, nem perto disso, mas dava para viver e sua esposa também trabalhava como lavadeira.

A chave acabou sendo escondida em seu violão e ele somente disse para os outros “violão” num dia que estavam num bar bebendo e rindo das histórias do passado, de outros soltados que haviam lutado a lado deles como aquele recruta que saiu do meio do mato gritando que o caapora tinha mordido ele, mas no final das contas ele tinha é sentado em um porco-espinho.

Entre as risadas um deles falou “mistérios da floresta” o que instalou um silêncio repentino entre os amigos. Todos se lembraram da sombra… E foi quando ele disse para eles “violão” e todos souberam do que se tratava.

Ele também estava vivo e bem 11 anos depois da visita da sombra. Já com quarenta anos apesar de um pouco envelhecido pela vida noturna de músico.

José

Ele era o mais novo do grupo, tinha pouco mais de 35 anos quando completou 11 anos da visita da sombra.

Nenhum deles jamais ficou sabendo quem era ou o que significava cada parte do que eles tinham, nem sabiam exatamente o que os outros estavam guardando.

Ele realmente se esqueceu da caixa depois de uns 5 anos. ela estava muito segura dentro de um prédio que ele tinha ajudado a construir, um edifício público com um grande porão que não seria difícil de acessar mesmo sendo um visitante comum, mas que ninguém frequentava por ser apenas um espaço para depósito. Ele marcou a parede com a silhueta de uma sombra raspada nos tijolos bem acima do buraco que ele tratou de deixar coberto apenas com uma camada de reboco frágil que poderia ser quebrada sem dificuldade ou estardalhaço.

Josué, o Coronel

Onze anos depois Josué estava com quase 50 anos. Uma idade avançada para quem lutou em uma guerra. Líder nato e sempre calmo nas situações mais desesperadoras, ele acabou conseguindo se tornar gerente de uma pequena quitanda.

Começou lá carregando mercadorias nas costas largas e fortes apesar de já ter quarenta anos e foi conquistando rapidamente a confiança do dono do lugar que, poucos anos depois, praticamente confiou todo o negócio a Josué, que só era chamado de Coronel no morro e pelos colegas de armas. No trabalho ele era o pacífico Josué que trabalhava duro e gastava pouco, quase nada.

Mesmo ganhando um pouco mais do que os outros e gastando pouco Josué sempre esteve apertado de grana porque teve essa sobrinha de sete anos que foi entregue a ele um mês depois da visita da sombra.

Os pais dela tinham morrido e não havia mais ninguém na família restando apenas o bom e velho Coronel que lhe deu tudo que podia e um pouco do que não podia.

Era uma menina calada, nunca a viram chorar, e o Coronel não tinha muito jeito com crianças educando-a como se fosse um pequeno soldado.

Ela fazia pequenos consertos na casa junto com ele, não usava roupas de menina e sempre fazia os amigos brincarem de soldado, de pique pega ou de esconder.

Foi um problema quando, aos quatorze anos, ela arranjou o primeiro namorado. Os rapazes diziam ao Coronel que ele tinha que ficar de olho, mas ele dizia que ela tinha que saber se cuidar.

– Maria, eu sei o que você anda fazendo com o Ricardo. – A imagem dele diante dela era gigante, ela tinha que olhar para cima para vê-lo inteiro e a sombra dele a cobria completamente. Qualquer criança teria medo do olhar severo que o Coronel lhe lançava, mas não ela.

– Não tô fazendo nada, tio!

– Pois saiba que ele quer fazer e moças que não são casadas não deviam fazer o que ele quer, mas é você que tem que cuidar disso. Eu não estarei sempre do seu lado, você sabe por quê.

Ninguém viu esse diálogo, mas todos viram o Ricardo com o pulso quebrado e o nariz sangrando quando ele saiu de um beco seguido logo depois por Maria que estava com os cabelos emaranhados e os olhos brilhando com um fogo selvagem.

Mulheres não se cuidavam sozinhas, muito menos menininhas, mas, talvez por ser mais velho e ter medo de morrer muito cedo o Coronel a criou como um menino soldado e não para ser uma esposa obediente.

A revelação

Maria completou 18 anos há menos de dois meses. Está trabalhando em um teatro, onde mais uma moça criada como menino trabalharia? Ela ajuda nas coxias nas trocas de figurino e na operação de polias para mover os cenários. Não tem futuro como atriz, mas gosta do ambiente livre e das conexões dos atores com os diversos submundos de uma cidade como o Rio de Janeiro. Em suas fantasias eles conhecem até monstros que andam pelos esgotos e que lhes garantem o sucesso nos palcos mediante o sacrifício de algumas virgens. Maria, quem sabe, poderia escrever peças se sua imaginação arredia demais não fosse mais fantasiosa que os anos 10 daquele século permitiriam.

Ela chega em casa tarde da noite, eles ainda moram no morro, seu tio é o último do grupo ainda morando naquela pocilga, mas ela gosta, deixa a gente mais resistente.

– Maria. O que você lembra antes de vir para cá?

Ela nem tinha colocado o segundo pé em casa ainda e seu tio a recebe com um golpe desses.

Fazia mais de dez anos que ela não pensava em outra vida alám daquela com o tio, o período até seus sete anos era uma região sem luz, totalmente apagada da sua memória e sobre o qual eles nunca tinham conversado, até aquele momento.

O jeito como algumas memórias ficam totalmente obscurecidas como se nunca mais fossem voltar, mas retornam com toda força em uma fração do tempo necessário para inspirar nos fazendo engolir o ar rápido demais e ficarmos tontos… Só não sabemos se é o ar ou as memórias repentinas que nos atordoam.

Assim ficou Maria. Encostada na parede do barraco olhando para o tio. Uma lágrima correndo pelo rosto (mas ela não chora!) e o coração martelando no peito a ponto de doer.

Ela lembra de tudo.

– De tudo, tio. De tudo que importa. De me esconder debaixo da cama. De ouvir os gritos de desespero da mamãe e o rosnado grave do meu pai e o barulho de coisas pesadas batendo contra a carne fraca até que os sons sumiram. Lembro do Sebastião, que era cozinheiro, me tirar do esconderijo segurando minha boca e correr comigo pulando pela janela para o jardim da casa e disparando para a segurança da escuridão me cobrindo com o seu corpo negro para ninguém nos ver fugindo. Ele estava descalço e só com as calças que, por sorte, eram pretas. Lembro dele me esconder no mato dizendo para não sair de lá senão o Curupira ia me virar do avesso e eu ia pedir para morrer de tanta dor que ia sentir. Lembro de ficar sozinha muito tempo em um lugar e depois vir morar com você, tio. Não lembro dos meus pais… Quem eram meus pais? Como eles eram? Por que eles morreram?

Ele não responde. Apenas lhe entrega um endereço e lhe diz para levar o seguinte recado para quem mora lá “A sombra me enviou. Me leve até os outros”

Maria não sabe exatamente o que esperar, mas confia plenamente no tio e bate à porta do Carlos que não atende. Ela vê umas pessoas na calçada em frente à casa e pergunta se sabem do morador dali. “Ah! o Carlos, ele saiu mais cedo, vai voltar com certeza”.

Ela espera por três horas até que ele apareça.

Ao vê-la ele a reconhece imediatamente e corre preocupado achando que aconteceu alguma coisa ao Coronel.

– Maria! O que você faz aqui? O Coronel está bem?

– A sombra me mandou, me leve até os outros

– Agora, Maria? Não quer entrar um pouco? É que… Eu não sei do que se trata toda essa história, mas algo me diz que você é muito jovem ainda para enfrentar o que quer que seja.

– Meu tio não pensa assim. Nem eu, Carlos. Se não for incômodo para você prefiro ir o quanto antes.

Ele assente com a cabeça e nem entra em casa. Ele sabe bem onde Jorge e José moram e trabalham. Sabe até onde achar as outras partes, mas seguir o plano é sempre o melhor caminho.

Em menos de duas horas eles reúnem as partes. Maria não deixa que ninguém vá com ela. O fogo que queima no seu peito lhe diz que ela não deve envolver ninguém de quem ela gosta nisso.

Foi fácil achar a caixa com as instruções do José. Ela leva a caixa para o teatro, acima dos cenários, onde ficam as roldanas das polias, onde ninguém poderá interrompê-la.

A chave abre a caixa. A primeira coisa é uma carta escrita com uma letra de caligrafia impecável de mulher.

Maria,

Minha alma se parte em pedaços ao lhe escrever essa carta e rogo a Deus que você nunca tenha que lê-la ou que o façamos juntos em alguns anos aliviados por temos superado essa fase tão terrível.

Seu pai está organizando o restante do conteúdo da caixa que lhe será entregue quando você estiver pronta, caso o pior aconteça, caso nossos inimigos se movam mais rapidamente que nós.

A caixa será confiada ao Sebastião, soldado nobre que teve que vir trabalhar como nosso cozinheiro por ser negro e não haver espaço melhor para ele ele nosso país, salvo raras exceções como aquele escritor mulato, Machado de Assis, espero que você leia as coisas que ele escreve um dia.

Talvez aqueles que a protegerão diante da nossa ausência achem melhor não lhe contar suas origens, portanto vou contá-las agora.

Eu, sua mãe, sou descendente de linhagem nobre de Portugal e seu pai é um General que comandou muitos homens até perceber que as guerras são um caminho de dor e de dominação que não ajudam a construir um mundo melhor e sim um mundo mais violento.

Nossos documentos estarão na caixa e você terá um nome e sobrenome.

A política não só desse, mas de muitos outros países, está sendo construída sobre os alicerces do poder, da força e do medo e não da razão, do humanismo e da sabedoria.

Seu pai enxerga um futuro de guerras terríveis pela frente e se opõe a isso e eu sigo ao lado dele por ser sua esposa e também por compartilhar das mesmas ideias e ideais.

Entretanto, enfrentar quem usa a violência e o medo com a razão é extremamente perigoso, mas não temos alternativas, não podemos usar os mesmos artifícios deles.

Graças aos nossos contatos militares e aristocráticos conseguimos reunir grande quantidade de provas sobre alguns dos políticos mais influentes desse país e de grandes latifundiários do café, do gado e outros que tem planos de explorar a população mais pobre desse país. O mesmo acontece em outras colônias. Nós não podemos nos calar diante disso e temos nos reunido com outras pessoas de visão humanista e humanitária. Queremos construir um mundo melhor.

A caixa onde está essa carta contém títulos financeiros que você pode usar para viver bem até decidir se casar ou ter outro tipo de vida, não importa o quanto queiram impedir, os ventos do século XX virão para todos e nos abrirão outras possibilidades!

Também há uma cópia de todas as provas que mencionei acima. Cabe a você decidir o que fará com elas, só peço que não se coloque em risco, minha filha, que procure dar continuidade ao legado de amor da sua família, amor por esse país e pela humanidade.

Seu pai e eu já cometemos muitos erros dos quais nos arrependemos, já fomos preconceituosos e belicistas, isso parecia correto na época, mas despertamos para um outro mundo quando você nasceu.

Com amor, Mamãe e Papai

Mamãe e papai estavam assinados com a letra dela e a dele.

Folheando os dossiês Maria viu os nomes de vários dos patriarcas mais poderosos da atualidade. Algum deles enviou os homens que esmagaram seus pais até a morte. Ela quer que eles paguem, mas percebe que não foi apenas um deles, que todos eles tinham causado extrema dor e morte a outras pessoas de acordo com o que constava nos papéis.

Que se destruam entre si…

Maria se lembra de Sonhos de Uma Noite de Verão, de Hamlet e de Muito Barulho por Nada, das intrincadas tramas de Shakespeare e percebe que não seria nada difícil fazer com que cada patriarca achasse que o outro estava deixando vazar seus segredos para obter vantagens.

No mesmo dia Maria começa a escrever uma peça sobre um senhor de terras que desvia o curso de um rio para prejudicar o vizinho, comprar suas terras e restaurar depois o curso das águas. Tudo suavemente temperado com as traições de esposas e maridos com outros patriarcas.

Ela assistirá lá de cima as trocas de olhares entre os familiares reconhecendo suas histórias nos palcos do teatro. Ela tem até o autor perfeito para as peças. Ricardo, aquele cujo pulso ela quebrou anos antes, ele jamais desconfiará que foi ela que deixou o texto da peça diante da sua porta durante a madrugada.

O Processo Criativo

Vamos ver o que vai ser escrito hoje :)

TemaVotosPúblico ÉpocaVotos
Terror3Infantil5Passado10
Romance4Jovem9Presente7
Aventura8Adulto12Futuro9
Suspense11    

[8:01]Suspense, adulto no passado.

Entre as sugestões tivemos pedido de distopia, de não ser distopia (hehehe), ambientado na cidade, scifi, fantasia, dimensão paralela, retrospectiva da semana (não sei se entendi bem), relacionamento na era social, Brasil favela folclore (os três juntos), conto dentro de um conto, Ásia… Um dia vou tentar fazer um conto com todas as sugestões da semana :-)

Hoje tenho que usar uma estratégia diferente para criar a história, é a quarta da minha lista que tem 11 por enquanto. Já criei em cima de um tema (superstição), partindo de uma imagem e deixando a imaginação correr solta e partindo da situação que dificulta a trama, do problema a ser resolvido.

O que será hoje? O folclore, Brasil, Favela está insistindo em ser usado. Tem a ver com passado e estamos na véspera do nosso exercício do sufrágio. É uma boa ideia falar do país e de favela.

Tem vezes que a imaginação quer agir sozinha. A minha está querendo inventar em cima de um tema que e estratégia que já usei, então tenho que domesticá-la pq me comprometi a fazer diferente sempre, né? :-)

Os ícones que o Docs coloca para as pessoas são engraçados, tem uma hiena, um furão e um pinguim. O furão parece um canguru…

Vamos lá! :-)

Vou partir de um momento histórico. Isso é meio complicado porque, em condições normais, exigiria pesquisa e não terei tempo para isso. Vai ter que ir de memória.

Forma para me inspirar: retalho de referências, pegar um pouco de cada lugar. Cabe aqui um pouco de Deuses Americanos de Neil Gaiman, Legado Folclórico de Felipe Castilho e vai acabar tendo um pouco de Stephen King (IT) que estou lendo além de outro tanto de um conto steampunk que li há tempos e depois vou colocar aqui.

[8:22] Não resisti e pelo menos abri o artigo da Wikipedia sobre favelas. Passando olhos…

[8:24] Ok, primeiras favelas em meados do século XIX, primeiras favelas modernas em 1920 com ex-escravos, soltados vindo de Canudos, europeus vindo atrás das oportunidades da era industrial.

A ideia é construir o suspense em torno desse ambiente: surgimento das favelas. O folclore entra no choque cultural nesse ambiente tão diversificado com soldados, ex-escravos e europeus.

Agora qual é o suspense? Como escolher um suspense? Um crime? Algo que parece, mas não é como em Muito Barulho por nada, de Shakespeare? Não… Esse é complexo de fazer sem trair a confiança do leitor. Até agora nenhum dos contos teve algo realmente sobrenatural, pode ser a hora já que pediram fantasia?

[8:29] Pausa para pensar em qual será o suspense… Como fazer isso? Pensando no ambiente e nos elementos que já decidi. Aliás me transportando mentalmente para lá.

[8:36] Aha! Já sei! Uma sombra se esgueira entre as ruas já estreitas do morro da Providência em 1899. Ela bate em uma porta e deixa uma coisa com a pessoa lá dentro. Já tenho uma boa ideia do que é, mas vocês saberão no fim do conto e ele começa antes disso.

Agora já posso começar e ele vai se definindo no caminho. Me desculpem pelas imprecisões históricas.

[8:40] Escrevendo o conto até [13h08]

[13:08]Acho que posso acabar assim! A história da vingança dela é outro conto, talvez um livro, né? Com certeza tem muito a revisar e a cena em que Josué sai de casa com o colchão de palha ficou solta, só para falar em uma das coisas a revisar. Esse conto foi um pouco mais difícil que os outros. Em parte por causa da abordagem que escolhi, em parte por precisar de pesquisa o que me deixou inseguro ao longo da história. Vou dar um tempo e fazer o hangout falando sobre isso.

Comentando no dia seguinte:

Além da cena do Coronel saindo de sua casa com o colchão (que ficou solta) tive que abandonar a ideia inicial de envolver a deturpação das crenças mitológicas e folclóricas na cidade grande e na favela. A ideia seria intercalá-la com os outros fatos como um suporte metafórico para a corrupção da sociedade. As criaturas continuariam sendo puras, mas seriam percebidas como viciosas e apodrecidas pelos homens.

Percebi que não haveria tempo para isso e tomei a difícil decisão de abandonar a ideia.

O mais importante é que a minha estratégia criativa foi por água abaixo: não consegui colher inspiração de outras obras como Deuses Americanos e Legado Folclórico (de Felipe Castilho).

No entanto isso também é importante como lição: a inspiração pode tomar conta e nos levar para outros lados. Se eu não tivesse me imposto um limite de tempo poderia forçar a convivência do plano com a inspiração e é o que eu sugeriria, a menos que a inspiração seja muito forte (não era o caso aqui).

Enfim, esse é um conto que, para ser publicado, terá que ser muito mais bem trabalhado.

Espero que os desvios do estado atual dele não irritem demais o leitor, mas tenho o compromisso de deixá-lo assim, no estado mais bruto possível.

Fontes de consulta:

Imagem ilustrativa no cabeçalho – Guia Arquitetura – Cláudia Quaresma

O Hangout

Um sábado, um conto – 4

Ajude a definir o próximo conto: