Advertência: relato real de contato com a morte
Ela está no restaurante do hospital enquanto eu e a irmã dele recebemos a notícia e descemos para o café do hospital para equilibrar as emoções já que não há muito o que possamos fazer. Ele está internado há dias, o meu cunhado, autista e com um déficit cognitivo considerável (palavras dos médicos que ouvi por acaso, mas são o fato) e agora sabemos que será a sua última internação, que já se estende por 16 dias enquanto escrevo esse post.
Ela está almoçando feliz. Ela está sempre feliz! Trabalha para a nossa família há quase três décadas e aprendemos juntos a ter uma relação saudável de quem precisa e quem presta um serviço. Nos tornamos amigos e ela o tem quase como um filho, o que, a propósito, é bem fácil de sentir por ele, mas com ela é intenso.
Subo até o restaurante com medo dela não receber nossa mensagem de texto “passa aqui no café antes de ir”. Ela estava saindo quando cheguei lá, sorridente como sempre, disse algo engraçado enquanto entrávamos no elevador e ri junto, sei que tenho que levar a notícia até ela com carinho.
Já há três meses nos preparamos, sabendo que era inevitável e provavelmente mais questão de meses do que de anos.
Pela nossa expressão na mesa ela já sabe que as notícias são ruins nessa terceira internação. Explicamos o que estava acontecendo dentro dele, o que os médicos ponderaram que poderia ser feito até decidirem que qualquer intervenção só lhe causaria sofrimento e não lhe daria mais tempo, que, muito provavelmente o próprio procedimento seria terminal.
– Então não tem mais nada para fazer? Ai! Meu Deus!!
E ela chorou o choro que não nos demos ao direito de chorar… Um sentimento que nos atravessa como um cometa deixando rastros no corpo, na alma, na mente.
Nos abraçamos, os três, ali na mesa do café e nos consolamos. Esse foi o começo de uma despedida que, na verdade começou em setembro e ainda não tem dia para terminar, além de certamente se estender além do fim da história dele, afinal ela continua em nós, nas lembranças, nos pequenos fragmentos físicos que deixamos quando nossa história termina.
Fim da parte um…
Parte dois…
Por que dividir em partes? Foi estranho. Cheguei ao último parágrafo e o texto me pediu para escrever que ali terminava a parte um e agora tenho que descobrir o porquê antes de partir para a parte dois.
Até o momento daquela notícia nós sabíamos que a história dele estava perto do fim, mas talvez a perspectiva de meses ou até anos não seja de fim próximo e, no momento que ela se tornou de dias ou semanas “caiu a ficha”.
Até aqui procurávamos qualidade de vida e agora o que podemos lhe dar é evitar os desconfortos inevitáveis do processo de morrer.
E é necessário dizer “processo de morrer”, sem eufemismos pois não podemos mais nos dar a esse luxo já que o processo é evidente dia-a-dia e nos obriga a pensar em como a nossa relação com a morte é mal pensada e, normalmente, quando é bem pensada acaba nos conduzindo a algum tipo de escapismo para evitar o fato inevitável de que aquela pessoa não estará mais ali conosco, que não poderá mais experimentar a vida em um corpo.
Pensar que agora ela experimentará outra forma de existência é, sim, uma forma de escape, mas não cabe nesse post a reflexão sobre como lido com a morte… Aliás esse é um processo em andamento.
Sou a pessoa que mais fica com ele pois sou a pessoa com mais flexibilidade (trabalho, família, essas coisas) para dispor tempo dia sim, dia não. Os dias não geralmente são da amiga que estava no restaurante enquanto recebíamos a notícia.
Fico sentado olhando para ele para levantar e estar ao seu lado quando ele abre os olhos. Para que ele veja um rosto conhecido sorrindo e não se sentir só.
Passo longos períodos ao lado da cama contemplando seu semblante, observando sua respiração, meditando sobre o caminho que ele trilha agora. A paz do sono, os momentos de ansiedade quando acorda e tem dificuldade para se comunicar ou se mexer, os outros momentos, felizmente mais numerosos, que nos olha com um sorriso muitas vezes meio fraco, mas sincero, e nos cumprimenta com um “oi” longo e satisfeito.
Acho que isso deve ser o que chamam de velar a pessoa. Se não é penso que deve ser criada uma palavra para isso, que signifique algo como “trilhar junto o último caminho atento para oferecer à pessoa o conforto que ela precisa”.
É uma experiência… Bem… Como vemos a vida? Como uma busca de prazer e satisfação ou como a experimentação de existir a despeito do que a existência nos apresenta?
Os orientais, com o conceito de Tai-Chi, do Yin e do Yang, que são obscuros ou luminosos sem que isso seja intrinsecamente bom ou ruim, agradável ou desagradável, revelador ou alienador e com um contendo a semente do outro, tem uma visão que acho bem mais sábia que a ocidental, maniqueísta e sem zonas de transição.
Pois é uma experiência assim. Trilhar esse caminho com ele é Yin e é Yang. Em alguns momentos sua tranquilidade Yin alimenta a esperança dele estar confortável, em outros desperta o receio dele estar precisando de algo que não estou notando. Quando ele se agita tentando comunicar alguma coisa ou simplesmente se mexendo com um intuito que não consigo definir se é agradável ou desagradável para ele é como caminhar pela zona Yang buscando cuidadosamente qual é o meu papel naquele momento.
Isso ficou claro? Porque é uma experiência que eu mesmo ainda estou tentando entender. Sei que está sendo um profundo aprendizado e exercício de abnegação no sentido de deixar de lado quem eu sou na tentativa de ser quem ele precisa que eu seja.
Ele quer falar ou quer ser entendido? Ele quer falar e ser apenas acolhido? Ele quer falar e que eu me aproxime? Ele quer falar e ficar um pouco a sós com seus próprios amigos imaginários? Ele quer se mover sozinho para se ajeitar ou os movimentos erráticos clamam por ajuda para achar uma mão para apertar, um abraço? O semblante plácido está pedindo por descanso ou anseia silenciosamente por uma razão para abrir os olhos?
A cada momento tateio os desejos de outra pessoa, que várias vezes não sabe, ela mesma, o que deseja. É como o processo de meditação, de se entregar a pensamentos fora das regiões da consciência deixando que passem conforme seus próprios desígnios.
A longa despedida
A notícia que demos à nossa amiga no café do hospital foi no dia 29 de novembro passsado e foi quando essa despedida começou.
Ainda não temos uma data para o último olhar compassivo para ele ainda vivo. Já foi horas, já foram dias, já voltaram a ser horas e agora estamos esperando por mais alguns dias procurando manter cada momento de paz possível para uma pessoa que não temos como saber como se relaciona ou entende a morte, mas sabemos que não é uma relação de paz, então cada momento é de manter a vida bela enquanto há vida.
Cada momento é uma despedida para nós, mas um até logo para ele…
Imagem:
Foto de Junseong Lee na Unsplash
@Roneyb um grande abraço pra vc e pra Cláudia nesse momento de dor. Que sorte das pessoas que tem vcs por perto, que pessoas maravilhosas vcs são!