Atravesso o portão levando comigo meus quase 58 anos, mas os levo como flocos de algodão, eles não me pesam, nunca pesaram, continuam não pesando e talvez algodão nem seja uma boa metáfora: cada um dos anos que essa consciência existe nesse corpo são como um álbum de imagens que flutuam como nuvens ao alcance de uma inspiração. As memórias que acumulo, as vidas que vivi, são histórias que dão sentido à existir.

Então as brumas e idades que passam a que me refiro não são, como pode parecer ao ver apenas o título, um lamento da velhice, uma velhice que não sei se um dia sentirei…

Mas uma cena despertou essas reflexões enquanto atravessava o portão do meu prédio a caminho de um lugar para passar 25 minutos andando e correndo em uma esteira mecânica auto-deslizante.

Duas adolescentes estavam atravessando o mesmo espaço que eu e um daqueles álbuns que flutuam entra as nuvens se colocou no meu campo de visão e as meninas desapareceram, o mundo todo desapareceu e eu estava oscilando entre 1980 e 2024, entre aquela realidade na mente adolescente de então e as mentes adolescentes de hoje.

Em mais uns 40 anos os adolescentes de hoje terão colecionado tantos álbuns nas nuvens quanto eu, até mais, espero, afinal o que faz a vida tão fascinante não é uma vida plana e com poucas experiências, é uma vida que vaga, que vive coisas, sejam boas ou ruins. E creio que hoje vaga-se muito mais do que nos anos 80.

No entanto não é isso que importa, não é mesmo? O que importa é o que pensamos do que somos, do que vivemos, das nossas perspectivas.

Entre as adolescentes e eu tem muitas outras idades!

Tem os vinte e bem poucos. O que estarão pensando, na média, claro, pois a todo momento tem milhões de pessoas pensando de milhões de formas diferentes; o que estarão pensando do que são, do que vivem, do que tem pela frente?

Sou, fui, sempre fui, uma pessoa deslumbrada no sentido de lançar os olhos para o futuro próximo, para o futuro distante. Aos 11 anos, portanto em 1978, quando o mundo se desesperada com o fim eminente em um conflito nuclear acidental e quase 10 anos antes do acidente de Chernobil, que nos traria outro medo, eu pensava que um dia todo conhecimento humano estaria como que flutuando ao nosso redor e poderíamos projetar em nossas paredes os quadros dos grandes pintores (tinha lido em algum lugar sobre a Internet).

A criança Roney se preocupava também com o fim do mundo, claro! Todo mundo já sabia naquela época dos problemas climáticos que estávamos criando, dos problemas que separavam a humanidade “Imagine there’s no countries, no religions, to”. Uma criança que chorava na janela do carro em movimento para a casa de praia preocupada com o futuro da humanidade, mas determinada a agir de alguma forma para ajudar as coisas a melhorarem…

Continuo sendo aquela criança, muito embora venha me sentindo como se nadasse em um lago sem corrente ou vento que ajude a progredir e com longas algas que se enroscam em nossas pernas e ameaçam nos puxar para baixo. Não lembro desse lago, dessa suspensão de movimento, dessas algas nem na adolescência, nem nos vinte e poucos, vinte e muitos e nem mesmo nos trinta e vários anos.

Me pergunto se esse lago tem envolvido os adolescentes, os vinte e poucos, os trinta e muitos de hoje.

Isso seria muito triste… Mas ainda é vida! Um momento bem angustiante da vida, afinal estar no meio da água com um mundo estático ao redor e algas nos sufocando é uma experiência bem angustiante até mesmo se apenas nos serve como metáfora para um momento ruim da humanidade… mas ainda é vida a ser vivida!

Por outro lado vejo aqui ou ali, quando transito não entre nuvens, mas entre lugares bem materiais e palpáveis, gente que parece estar vivendo as festas que várias vidas minhas já viveram (e outras ainda viverão), sem lagos, pasmaceira ou algas.

É muito difícil… não, é uma tolice tentar imaginar como está o mundo dentro das pessoas! Há sinais, claro, mas coletividades são complexas e as pessoas não são geradores de bate-papo e podem viver de um jeito, experimentar a vida de outro, votar de várias formas diferentes dependendo de como acordaram no dia ou o que apareceu na rolagem infinita… uma sugestão séria: nos dias que tiver que tomar grandes decisões não olhe nenhuma rolagem infinita, olhe para o horizonte e para os seus sentimentos… e tratar ainda de outra forma esse ou aquele grupo de pessoas. Gente é um fenômeno complexo…

Talvez, penso tentando me desvencilhar um pouco das algas, a vida seja muito mais simples afinal! Talvez a gente devesse buscar a pessoa nadando mais perto e nadar juntos. Talvez alguém tenha uma prancha ou uma boia, uma vela que capture as breves e frágeis brumas que estão lá… elas sempre estão lá… pode ser que alguém saiba de um pier flutuante onde podemos sair um pouco da água, relaxar os músculos ao sol, levantar um pouco e olhar mais adiante.

Olhar mais adiante…

Essa talvez seja uma lição lá dos meus primeiros álbuns nas nuvens, quando li o Rebocador Toinho, muito depois O Senhor dos Anéis, um pouco depois Demian: sempre tem um mais adiante para ser visto e tem algo muito errado quando o mundo ao nosso redor nos faz crer que não existe “mais adiante” e que as cercas são todas intransponíveis ou ainda que de nada adianta lutar enquanto houver cercas, que não existe esperança enquanto existir capitalismo, enquanto existir bilionário, enquanto existir fascista, enquanto existir homem, enquanto existir gente… enquanto existir gente…

Acho que, de todas as cercas essa é a que me deixa mais triste, a que nos diz que o ruim no mundo são as pessoas. Sendo nós mesmas, pessoas! Não há solidão maior do que essa. A solidão de nós mesmas, que nos tornamos uma sombra vazia que rejeita a si mesma, que rejeita tanto a humanidade que vive em uma não existência. E nem é culpa de quem vive essa solidão! Talvez seja culpa da calmaria que não deixa as nuvens dos nossos álbuns de memórias chegarem até nós. E não só eles, afinal dos álbuns de memórias da humanidade estão registrados em livros, filmes e, ainda mais poderoso, nas histórias que contamos entre gerações e trocamos com outras amizades!

Gosto de pensar que, assim como minhas vidas adolescentes, as de vinte e poucos, vinte e muitos, cinquenta e muitos pensam coisas assim todas as outras vidas, ainda que em segredo pois é difícil abrir reflexões íntimas para o mundo, fazem o mesmo, estão nadando no mesmo lago e falta só o espaço de um suspiro para nos encontrarmos!

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Foto de kevin laminto na Unsplash