Esse post surgiu quando eu estava ouvindo Secret, das The Pierces.

É um final de tarde quente e Carlos anda a esmo por uma região menos movimentada da cidade naquele horário, é uma rua com diversos bares e botecos que se enfileiram como um colar de contas de pérolas, cada lugar com suas histórias e suas tribos. Em breve o sol tocará os contornos dos morros mais além lançando sobre a rua os reflexos dourados de um belo fim de dia.

– Carlos! Ô rapaz!

Carlos se vira e vê Miguel sentado a uma mesa sozinho comendo petiscos e bebendo o que parece ser um mate bem gelado.

– Miguel! Há quanto tempo, cara! – diz puxando uma cadeira e sentando de frente para o amigo.

Carlos vai forçando a memória para lembrar quanto tempo faz que não encontra com o Miguel e o que tinha ouvido dele depois que deixou o emprego de engenheiro em uma multinacional. O cara era um desses que não aguentou a rotina de trabalho, tinha largado tudo, vendido o apartamento que tinha herdado da família. Passou um tempo de bar em bar e depois sumiu. Alguém disse que ele andava pelo mundo com uma mochila nas costas e fazendo bicos. Carlos pensou que é triste que as pessoas não aguentem a realidade e prefiram uma vida assim, sem nenhuma estabilidade.

– Carlos… Carlos… Como vai o trabalho, a vida, a família? Como estão indo as coisas aqui no mundo real?

– Por onde você andou, Miguel? O mundo real tá a merda de sempre, cada dia um passo a mais para trás, né? Você acompanha a política? Soube que que você andou zanzando pelo mundo e deve saber melhor que eu como parece uma bosta de um apocalipse com a política indo cada vez mais para um tipo de delírio distópico levando parte da sociedade com ela. Dizem que a humanidade tem o governo que merece, mas sei lá… Meus amigos não são tão ruins assim não! Nem a dona Verônica que faz a faxina lá em casa e nem a maioria dos balconistas de bares… Menos os motoristas de táxi e aplicativo, esses parece que adoram mesmo a história do “homem de bem com uma arma na mão”… Mas desculpe! Acho que as coisas andam engasgadas aqui no peito e, sei lá por quê, saiu esse desabafo aí! E você me olhando com esse olhar tranquilo! Hahahaha! Que foi?

– Nada! Nada! – O sorriso do Miguel é aberto e leve. Ele olha para as mesas próximas e dos outros bares conduzindo também o olhar do Carlos, que acaba lançando um olhar diferente nos arredores e se surpreende com a diversidade de pessoas ao redor. Leves, pesadas, sérias, coloridas, alegres, compartilhando alguma tristeza, comemorando algum sucesso, solitárias tranquilas, solitárias tristes, solitárias no meio dos próprios amigos e o Miguel… Que parece estar acompanhado por todas aquelas pessoas, parece fazer parte de todos aqueles grupos, talvez pelo modo como olha profundamente para eles – É só que é isso mesmo, mas também tem esse momento que estamos vivendo aqui e que pode existir flutuando entre o passado e o futuro sem tocar em nenhum dos dois, um espaço e um tempo de breve retirada e leveza, não é mesmo? Você tem algum compromisso na próxima meia hora?

Bem, Carlos estava mesmo só procurando um lugar para sentar e respirar um pouco antes de ir para casa, a esposa estava viajando a trabalho e os dois filhos já não moravam com eles.

– Pelo jeito a vida de mochileiro te deixou mais poético, hein, Miguel? Mas você tá certo! Sim! Sim! Tô de bobeira, tem só uma live que eu quero ver em umas 2h e minha casa é aqui perto, enfim, você tem razão, mas nunca consigo me desligar do que aconteceu e pode mexer com o meu futuro e nem do que pode estar prestes a acontecer e eu nem imagino e não terei como me preparar. Acredita que, ainda outro dia, deixaram uma senhora idosa que trabalhou para a família da minha esposa há 20 anos na porta do nosso prédio? Uma história complicada de um asilo que fechou, conhecidas que a levaram para casa, mas encheram o saco, nos descobriram e literalmente desovaram na nossa porta sem nem avisar que estavam indo… Foram quatro noites tensas com medo da senhora, cega e quase surda, levantar de noite e cair, sei lá! Conseguimos achar um asilo para ela no final e vamos morrer numa grana por mês, mas não dava para jogar em qualquer canto como tinham acabado de fazer, né? Mas olha eu de novo desabafando… Mas fala da sua vida, Miguel! E verdade que você virou um tipo de mochileiro sem raízes? Acho que eu não saberia viver sem um canto meu…

– Bem… Carlos… Uma vez me contaram um segredo que mudou minha vida, mas tive que jurar pela minha vida que jamais contaria a ninguém, mas era muito difícil encontrar com as pessoas carregando um segredo tão importante e não morrer de vontade de contar, pelo menos para as mais legais, como você, a propósito, então fugi… Achei que, não formando laços muito fortes com ninguém a vida seria mais leve e o peso do segredo acabaria ficando mais fácil de carregar. Garçom! Mais um mate bem gelado com limão e uma porção de gurjão de frango, pode ser? Quer alguma coisa, Carlos? Você não precisa pagar nada hoje!

Carlos, depois de dois desabafos meio descompensados, se sente um pouco constrangido e decide que precisa relaxar.

– Um chope bem gelado para mim e uma porção desse queijo coalho com melado, valeu? – O garçom anota os pedidos e vai para outra mesa. – Que história estranha essa de segredo, Miguel… Meio bad, não é não? Eu achava que você estava livre e vivendo a aventura que eu não tive coragem de viver… Mas… Foi mal! Não tô nem com pena e nem me achando superior! Puta merda! De jeito nenhum! Deixei de viver muita coisa que poderia ter vivido sem colocar uma mochila nas costas e saído pelo mundo!

– Que isso, Carlos! Tá de boa! Nós todos estamos fugindo de alguma coisa, né? Eu fugi de contar um segredo que não podia contar e talvez nem fizesse bem a quem eu contasse, mas me fez bem, sabe? Você está certo, eu me tornei uma pessoa livre! Imagino que você esteja preocupado com o lance de jurar pela minha vida, mas vou te explicar, acho que você é um cara que merece saber!

– Saber do quê? Do segredo? Não! Cara, desencana! Imagina se eu quero saber de um segredo que você jurou proteger com a sua vida! É a localização do tesouro do rei Salomão? Se for esse aí já é outra história! – E sorri alegremente conseguindo se entregar ao momento, principalmente porque está convencido que o velho amigo não está falando sério.

– Vou te contar a história, não o segredo, senão acho que você é quem teria que jurar pelo sua vida nunca revelar a ninguém, mas… Já vivi tanta coisa nos últimos 5 anos que hoje entendo que alguns segredos valem mais que a nossa vida…

– Eu estava em uma exposição de petróleo e gás, dessas onde pequenas empresas procuram contato com as grandes do setor. Eu estava lá para sondar o mercado para uma solução que eu vinha desenvolvendo. Lá pelas tantas parei em um estande que tinha bebidas, grandes negócios sempre envolvem bebidas de alguma forma, né? Um cara sentou ao meu lado e foi logo dizendo que soluções para longo prazo como a que eu estava desenvolvendo são essenciais, que a humanidade precisa pensar a logo prazo ou não existirá a longo prazo. Bem, eu estava cansado de reuniões, então decidi dar corda para o cara, certo?

O Sol a essa altura já tocou o cume dos morros ao fundo e aqueles fachos de luz dourada já se espalham ao redor. Vão durar poucos minutos e nunca prestamos atenção a eles, mas o Miguel fez uma pausa para observar levando Carlos a fazer o mesmo. Uma suave brisa mais fresca anuncia o final do dia abafado que vinha castigando quem precisava sair das salas refrigeradas ou dos ventiladores potentes.

– Achei normal o cara saber do que eu estava desenvolvendo porque eu falava com todo mundo já fazia um tempo e, você sabe, eu tinha uma certa relevância no meio. Então dei corda para o cara dizendo que tinha dúvidas se as empresas teriam essa sabedoria de cultivar uma visão de longo prazo e essa era minha dúvida com relação aos meus esforços, mas que era a minha parte e não me custava nada tentar. E foi aí que ele fez o que mudou a minha visão de mundo. Sem tirar os olhos dos meus olhos ele começou a dizer o que aconteceria à volta. Coisas como “Vai passar um cara de camisa vermelha e ele vai derrubar o notebook”, “Blue curaçau com energético” e alguém pediu isso e “Chuva” e começou a chover. Até a chuva eu achei que era algum tipo de pegadinha, as pessoas são criativas, né?

Carlos não consegue esconder um certo choque. O amigo pirou coitado! Desde 2013 as pessoas no mundo todo começaram a pirar muito. Sobrecarga de informação, era a teoria do Carlos, por isso ele largou tudo que eram plataforma social comercial, virou um tipo de eremita digital que nem Google usava preferindo fazer as buscas diretamente nos sites onde achava que ia achar as melhores respostas. Miguel parece ter notado e, com um sorriso de Mona Lisa, faz uma pausa, come um gurjão, pega outro, passa no molho e, agitando-o no ar como se fosse o próprio dedo, continua.

– Claro que na hora eu calculei que era só sorte, mas o sujeito iniciou uma preleção muito coerente sobre modelos de espaço tempo, que a relatividade nos mostra que o fluxo de tempo não é como fotogramas de um filme, afinal ele passa de formas diferentes de acordo com a velocidade e presença de massa, desse jeito o nosso presente é futuro para alguém perto de um buraco negro ou se movendo muito velozmente, essas complicações, você sabe, né? Só que o resultado é que o Universo pode ser como uma coisa de acontecimentos já programados. Tudo que pode acontecer já aconteceu e não temos como mudar o futuro.

– Esse foi o segredo? Porque… bem… isso não bem um segredo, já vi físico falando sobre isso até em canal no YouTube, Miguel! – E Carlos dá uma piscada para o amigo querendo aliviar a tensão porque parte dele sente um desconforto, como se tivesse algo real ali naquele papo.

Miguel come o gurjão que tinha na mão, pisca de volta e tranquiliza o amigo…

– Por Deus! Não! Eu prometi guardar o segredo, lembra? Mas a verdade é que essas palavras do cara já me deixaram meio bolado, sabe? Será que eu não estava deixando de viver a minha vida e me entregando a um delírio narcisista em que eu fazia parte da salvação da humanidade? Porra! Tanta gente com mais influência, mais dinheiro, mais inteligência, mais contatos e tudo isso junto a mais do que eu! Por que seria eu a pessoa a ter sucesso? O que é sucesso, afinal de contas? Na nossa vida pessoal, saca? Sucesso é estar aqui conversando com um amigo, compartilhando momentos, mesmo os ruins! E gostaria de ter estado ao seu lado nessa história aí da idosa abandonada na sua porta, sabe? O segredo foi só uma gota d’água que me fez perceber que faria muito mais pelo mundo se tivesse uma vida mais livre, mais plena. Claro que teve momentos que fiquei muito sem grana, que tive problemas, mas não estava preso a nenhum desses momentos. Sofri, mas com a certeza que taria saída para algum lado… Tá, por sorte não acabei preso em algum lugar inóspito pelo resto da minha vida! Era um risco, né? Mas cá estou! De volta à cidade que adotei como minha cidade natal! Onde nascem as minhas memórias, onde aprendi as primeiras coisas sobre amizade e sobre mim mesmo.

– Mas, Miguel… Desculpe, posso estar sendo meio acusativo, mas você não pensou nas outras pessoas que precisavam de você? Amizades, familiares, amores, pessoas por quem você seria responsável como seus pais?

– É… Eu até pensei, mas tinha o segredo. Fui meio filho da puta, eu concordo, mas não dava para mim, tá ligado? Olhar para pessoas que eu amava e por quem eu me sentia responsável e não poder contar o segredo porque poderia perturbar o futuro. O segredo era uma mensagem do futuro. Acho que posso dizer isso. Pode ter sido um truque, mas o cara foi embora, entrou em um banheiro, eu segui ele, e o cara sumiu. Só tinha uma porta naquele banheiro e o sujeito não desceu pela descarga…

– Miguel… Você entende que eu não posso acreditar nisso, né? Que tenho que assumir que você realmente foi enganado, ou deu uma pirada, alguma coisa na bebida, talvez… Desculpe dizer assim na lata, ainda mais depois de você viver em função desse segredo nos últimos anos.

– Eu sei. Por isso voltei. Quando o cara me passou o segredo ele disse que… bem o segredo era um acontecimento com data, hora e minuto marcado. Eu queria passar esse momento aqui, onde passei tantos momentos! E aí você apareceu. Achei que não podia ser coincidência. O mundo acontece se ramificando. A cada momento o mundo pode se dividir em dois, três, N ramos diferentes. O que acontecerá, por exemplo, se eu te contar o segredo pura e simplesmente? E se eu “passar para você”? Ou seja, te contar se você jurar pela sua vida que não passará a mais ninguém? Tá ai… Quer experimentar isso? Tô achando a ideia ótima!

Carlos abre a boca, mas não diz nada. Não sabe se levanta e vai embora, se ri dizendo que a história do amigo é ótima e chegou a assustá-lo, se topa receber o segredo só para ver até onde vai a mente alucinada do amigo, mas mentindo que manterá o segredo.

Curiosidade é uma das principais qualidades humanas, não é mesmo? Também é uma das suas maiores maldições!

Miguel olha de um jeito divertido para o Carlos. Pode estar rido dele, pode estar sentindo outro tipo de liberdade diante da possibilidade real de passar o segredo a alguém quebrando as regras do Universo.

– Tá bom, Miguel! Vou pegar esse fardo de você! Hahaha! Me passa o segredo e eu guardo ele até o fim da minha vida! – Carlos pisca para o Miguel deixando clara a zoação e que não acredita em nada daquilo, mas na verdade uma parte dele receia que seja real, talvez pelo olhar do amigo, talvez por sentir em uma parte da sua consciência que aquilo faz algum sentido.

Miguel escreve alguma coisa em um guardanapo e diz que é uma hipótese, que logo eles saberão se ela está certa, que faltam poucos minutos para o evento previsto pelo desconhecido há 5 anos. Miguel se estica sobre a mesa, cola a boca perto do ouvido do amigo e se estivéssemos de fora veríamos os olhos do Carlos se arregalarem e oscilarem entre descrença, surpresa e medo. Miguel não volta a sentar despencando sobre a mesa, quebrando o copo de mate gelado entre ele e a mesa. A vida se extinguindo nele mais rápido que o último traço do Sol nos morros ao longe.

Carlos senta assustado enquanto as pessoas ao redor percebem o homem caído sobre a mesa, o garçom grita para dentro do boteco mandando chamarem socorro.

Miguel caiu com a mão esquerda esticada na direção do Carlos. Dentro dela a hipótese que ele escreveu momentos antes de morrer: Um segredo entre duas pessoas só vive de uma delas morrer…

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Foto de Jp Valery na Unsplash