A cidade é de janeiro, as chuvas são as de março que vão se deslocando para abril conforme o aquecimento global provoca a potencialmente catastrófica mudança climática.

Não é apenas de água a enxurrada, também é de projéteis, 80 disparados pelas forças armadas contra uma família. Não são 8, são 80, uma enxurrada que, num tribunal, seria usada para apresentar a hipótese de crime de ódio e não de mera autodefesa… Mas foi a família que não teve chance de se defender.

Rio é o que dizemos quando algo nos diverte, talvez quando algo merece nossa ironia. Rio também é o fluxo de água límpida que as chuvas depositam no continente e flui para o mar, esses rios são símbolos de reunião.

Está sem rio o Rio de Janeiro.

Rios também espalham um suave murmurinho ou, quando são largos e caudalosos, fazem turbilhões de sons que lembram multidões se mobilizando, confabulando, planejando.

As enxurradas de Janeiro são aterrorizantemente silenciosas.

Não pela ausência da voz das pessoas, esse som está lá ecoando nas realidades offline e online, mas pela mudez daqueles que falaram em nome de Deus ao se candidatar, que prometeram ordem e proteção às famílias.

O presidente está calado, mais preocupado com os hábitos sexuais dos outros e com o próprio umbigo. Toda vez que o abordam ele parece ser capaz de falar apenas dele mesmo, da própria verdade sonhada em corredores escuros onde os olhos sofridos da população não chegam.

O governador já vinha dizendo que seus braços armados já estavam explodindo cabeças à distância em comunidades quando lhes pareciam suspeitas. Seus braços são polícia, júri, juízes e carrascos obliterados em um único soldado e sua arma de longo alcance. Que lhe importa se 80 dos seus projéteis foram mandados para dilacerar uma família?

Tempestade..

“Estamos todos à deriva, num mar de violência, num rio de abandono…” – Fluvia Aguillar

Arte: Ulisses

O prefeito chora o mesmo cordel de sempre, da chuva atípica, quando toda gente com a menor honestidade intelectual sabe que chuvas cada vez mais atípicas em épocas cada vez mais inesperadas serão cada vez mais a norma em um planeta se envergando ao aquecimento provocado por nós e assistindo seu desequilíbrio climático em busca de um novo equilíbrio onde a vida como conhecemos certamente não é uma preocupação e se o próximo clima for viável para o que vive hoje será mera coincidência.

Todos em silêncio e, quando falam, soam sussurros insanos, perdidos da realidade como os pés do enforcado buscando o chão que jamais encontrará. Suas vozes não tem terra, não pisam no solo das vozes do passado, do aprendizado acumulado, das reflexões livres de crenças e sedentas de coerência.

É um governo de lunáticos e a Lua sequer é um relento para a cidade afogada em nuvens, ruas convertidas em corredeiras (nem mesmo aí encontramos rios) e carne cortada por projéteis que jamais deveriam ser disparados, que deviam ser substituídos por fluxos de letras que formam palavras, frases, parágrafos e páginas somando-se em livros, mas não cujas palavras vieram ao vento atravessando mentes nubladas e delirantes, que venham do nosso legado civilizatório, dos poetas do passado e do presente, dos filósofos e cientistas que perscrutaram o significado da vida e do Cosmos inóspito ajudando-nos a encontrar humildemente o chão onde apoiar bases para uma vida digna ainda que assombrada pela ganância e pela mentira de quem prometeu cuidar de todos.

Não Rio de Janeiro, choro de janeiro a dezembro… Mas também choro diante da coragem e da riqueza desse povo, esse povo do Brasil, das Américas, da Terra, dos rios da Via Láctea.

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