Quando nos emocionamos uma descarga bioquímica que dura 90 segundos se espalha por nosso corpo e reduz o funcionamento da nossa mente ao de uma criança de uns três anos.

Antes te escrever esse post tive que esperar vários períodos de 90 segundos depois de ler o artigo Em Defesa da Literatura de Mário Vargas Llosa na Piauí.

Infelizmente minha emoção foi de pavor.

Aparentemente para Llosa a humanidade se divide entre “leitores de Cervantes ou de Shakespeare, de Dante ou de Tolstói” que se sentem da mesma espécie e o restante:

Incivilizado, bárbaro, órfão de sensibilidade e pobre de palavra, ignorante e grave, alheio à paixão e ao erotismo – um mundo sem literatura teria como traço principal o conformismo, a submissão dos seres humanos ao estabelecido. Seria um mundo animal

Quero deixar claro que tenho convicção de que a arte é o ar que a consciência respira e quanto mais acesso nossa civilização tem à arte mais nossa consciência individual e coletiva cresce, mas não posso aceitar tamanho elitismo!

Nem toda arte é literatura, nem toda arte obedece aos critérios de arte dos imortais das academias e raramente é através da sua forma mais erudita e pura que a arte consegue se espalhar por nossa civilização.

Quantas pessoas leram os clássicos? Qualquer um deles? Quais você leu?

Como não li mais do que meia dúzia de clássicos imagino que não tenha direito de opinar já que devo me enquadrar entre os “incivilizados, bárbaros e órfãos de palavra”, mas assim mesmo, bronco e selvagem, me sinto no direito de defender minha frágil consciência e a de todos nós que não somos letrados na chamada “boa literatura”.

Em algo concordo

Como disse concordo que a chamada boa literatura, ou melhor, a boa arte é essencial para criar o pensamento dissonante, a perversão da estética ou da moral que serão responsáveis pelos ecos que se espalharão por toda nossa coletividade criando novas culturas, manifestações artísticas, percepções da realidade e outras formas de alterações que podem ou não dar certo, mas fazem parte da evolução da nossa consciência.

Sem Shakespeare, Milton, Dante, Fernando Pessoa, Cruz e Souza, Machado de Assis (e acho que citei todos que li) e muitos outros a nossa espécie estaria em um estágio muito mais selvagem de consciência.

No entanto creio que é um erro crasso, elitista e até com ameaçadores traços de fascismo sugerir que apenas quem entra em contato direto com as versões originais dessas obras teve acesso ao seu valor artístico e cultural.

A arte é como uma vacina

Vacinas são pequenas doses de um mal que é injetado em nossas veias para que possamos aprender aos poucos e construir mecanismos para receber doses maciças.

A diferença é que a arte não nos prepara apenas para as dores, é claro, ela nos antecipa prazeres (com seus riscos de sedução) e devaneios que ajudarão a criar novas facetas em nossa rica consciência.

Basta olhar até para os mais simples sopros da cultura chamada de idiota por Llosa para ver ali os sussurros dos grandes clássicos.

Guerra nas Estrelas, Senhor dos Anéis, Fronteiras do Universo, Basquiat, Merce Cunningham, Sandman (os quadrinhos de Gaiman), Codinome Robotech, Viagem de Chihiro, a literatura de cordel, impossível esquecer a literatura de cordel, o hip hop, o samba de raiz.

Tudo isso são preciosos líquidos portadores de doses suaves das mais profundas palavras de Proust, Kierkergaard ou Homero!

E se todos fossem eruditos?

Um mundo de adoradores dos grandes mestres da literatura (parece que para Llosa só há literatura), filosofia, teologia, teatro etc. seria uma Valinor materializada?

Não tivemos diversos grandes eruditos sádicos, imorais, perversos, eugenistas… Aliás o ícone da loucura homicida, Hitler, leu quase todas as obras de Shakespeare além de Dante e mais alguns clássicos.

Em todo caso há na erudição um tipo de endurecimento da consciência que tende a idolatrar as vozes do passado desprezando a consciência do presente.

É raro encontrar um erudito que não esteja convicto de que jamais haverá outro Shakespeare ou um teólogo que não ache que os humanos só foram capazes de ver Deus entre 5 e 2 mil anos atrás fazendo da Bíblia o livro definitivo sobre a espiritualidade humana.

Um mundo de eruditos é um mundo onde a consciência está morta e não há espaço para a nova arte.

Prefiro um mundo selvagem e incivilizado a um congelado em sua própria arrogância.

Bem, agora vou ali ler Proust para poder chamar todos os outros de animais rudes e sem sensibilidade.