Todo espetáculo de boa dança contemporânea é uma jornada na descoberta de um novo idioma.

Os movimentos, a princípio sem sentido, dos bailarinos gradativamente vão se ligando a emoções e ideias para formar palavras, frases e significado. Carlos Laerte, coreógrafo da Laso e os demais artistas que trabalham com ele são muito bons nisso. Já acompanho seus espetáculos faz alguns anos.

Essa jornada é um estímulo precioso para a consciência do espectador, mesmo (talvez principalmente) se ele nunca assistiu um espetáculo de dança contemporânea.

Antes de ler o que achei do espetáculo passo logo o serviço para que você possa assistir fazer sua própria jornada:

Serviço

Cabeção de Nego: o poder da existência

Local: Teatro Sesc Ginástico (Av. Graça Aranha, 187 – Centro)

Horário: 19h

Valor: R$16 (inteira)/ R$8 (meia)/ R$4 (comerciários)

Sobre o Espetáculo

O tema a princípio parece ser a cibercultura, mas pessoalmente acho que eles partem das suas experiências para estudar as relações humanas pessoais e interpessoais em uma sociedade hiperconectada de forma que a assustadora tecnologia deixa de ser a vilã para ser um pano de fundo para o que estamos vivendo.

Desconheço se eles tiveram um consultor especializado em antropologia, mas creio que não e francamente creio que essa é uma das qualidades dos verdadeiros artistas: eles vão além da ciência ao mergulhar na alma humana.

A estética caótica dos movimentos aparentemente imprecisos guarda uma ordem difícil de captar para quem não está habituado ao caos, mas o que há ali no meio é o desejo do encontro.

O resultado é um mosaico, não é uma história com início, meio e fim, mas exatamente o mesmo tipo de mosaico que nós assistimos todos os dias vivendo fragmentos de vida perdidos entre hiperlinks: copiando a navegação errática da web em nossas vidas trocamos de amizades muito facilmente, nos relacionamos muito frenética e superficialmente formando aglutinações de contatos que no entanto carecem do cimento da emoção profunda.

E digo tudo isso apesar de ser um entusiasta da cibercultura como deixo bem claro no meu outro blog, o Meme de Carbono, no entanto o papel do artista muitas vezes é o de alertar para os piores quadros possíveis e, mesmo achando que no final a hiperconectividade criará relacionamentos mais sinceros e profundos isso não valerá para todas as pessoas e certamente é um desafio aqui e agora.

… A propósito, nós copiamos a navegação errática e a solidão da web ou
será que os últimos séculos é que foram erráticos e solitários o que se
reflete agora na Web e no nosso grito “não aguento mais essa solidão,
esse mundo em fragmentos”?

As questões essenciais

“Quem somos, de onde viemos, para onde vamos, qual é o sentido da vida?” Nada disso. As questões essenciais em Cabeção de Nego me parece que se resumem a “Como me relaciono?”. O restante são satélites do grande impulso gregário humano.

A partir do relacionamento com a família, com o outro e com você mesmo surgem todas as outras demandas existenciais.

Nesse espetáculo quase sempre há o grupo. Ele pode ser um espectador distante para o qual fazemos shows (não só nos Youtubes da vida, mas também, e principalmente, pessoalmente), pode ser próximo, muito próximo, mas raramente nos tocando de verdade, ou seja, tocando nosso corpo, mente e emoções.

A crise do toque não é uma questão contemporânea, talvez nunca tenhamos realmente nos tocado… Lembro aqui da obsrvação de Harold Bloom que, até Hamlet, nós não tocávamos a nós mesmos, não refletíamos sobre nosso mundo interior, mas hoje vemos até em Doctor Who (sob a pena de Neil Gaiman) que “humanos são sempre assim, pequenos por fora e vastos por dentro”.

É isso que, em minha humilde opinião, vemos em Cabeção de Nego: Há mais entre os meus sentimentos e os seus do que pode supor nossa vã filosofia.

Outras fontes

Making of no canal da produtora da Cia Laso