Imagem: FIKA cafe, Toronto, Canadá por Patrick Tomasso

Hoje foi o dia dela, mas já é noite quando eu, finalmente, me afasto de todo o resto (e ainda com muito trabalho pela frente) para traduzir em palavras o que esteve orbitando meus pensamentos desde o primeiro ofuscar do sol nos meus olhos.

Talvez você pense que escrevo um post todo ano no aniversário da minha mãe, ou que talvez 74 anos seja um número especial para nós, pois lhe digo que nada disso se aplica.

Escrevo excepcionalmente pois sou especialmente grato a ela esse ano… Espere! Corrijo-me: escrevo publicamente esse ano pois as razões da gratidão me transcendem e podem chegar a você. Nos outros anos as palavras ficaram apenas entre nós dois.

Sou grato pelos livros que aprendi a amar graças a ela. E “os livros” aqui está com o sentido de coletivo e não desse ou daquele autor ou gênero específico. Minha mãe me ensinou a magia de viver outros mundos, outras vidas, outras realidades através da leitura.

Isso é fantástico, mas, logo descobri, era apenas o portal para algo muito maior, para a empatia, afinal deixamos de ser nós mesmos para ser o outro, para ser muitos outros, quando a paixão por livros se transforma em paixão por histórias e depois pelas que nos tiram do nosso eixo, nos causam até desconforto.

Sei que um dia minha mãe teve uma conversa comigo sobre a empregada negra que eu não conseguia aceitar nos meus seis, talvez sete anos.

Pode ser que minha memória me engane, mas o que lembro é de um olhar de pesar, compaixão e alguma decepção.

Talvez essa tenha sido a primeira vez em minha vida que foi plantada em minha consciência a semente do auto-questionamento: você pode estar errado… Repense… Mude.

Agora, em 2016, minha mãe completa 74 anos ainda com o sorriso dos 30 iluminando seu rosto e quem a tem por perto. Completa 74 anos com o ânimo e espírito dos vinte e poucos, sempre questionando a vida.

Essa manhã mesmo ela me contou do preconceito que teve contra umas jovens mulheres estudantes de medicina que faziam sexo com vários homens ao mesmo tempo e viravam noites a álcool e drogas.

“Onde iam acabar aquelas moças” ela me perguntou ao telefone apenas para revelar que, soube uns anos mais tarde, que tinham se tornado boas médicas e boas pessoas, tinham salvo a vida de uma conhecida.

Minha mãe de 74 anos ainda questionando os próprios valores, os estereótipos que abraçou ao longo da vida.

Olho ao meu redor, pela janela do apartamento, pelas janelas da Internet e percebo que vivo no meio de uma transformação social, econômica, política, cultural, moral… Tudo sem precedentes. Vivo a necessidade de ser fluido como a água para ser capaz de fluir para a nova humanidade.

E tudo começou com um livro de pano, com a história de um rebocador vermelho lida para mim por uma mãe que me ensinou muito mais do que ler, me ensinou a me transformar.

Feliz aniversário, mãe!

P.S.: O Bela, Recatada e Do Lar fica para outras histórias, mas, apenas para o caso de você estar lendo esse post muitos anos depois de 2016, explico: #belarecatadadolar é uma mobilização, parte da primavera das mulheres, em reação a uma matéria em uma revista conservadora exaltando a “boa mulher” como a que tem essas qualidades. Algo que minha mãe já enfrentava em sua juventude.