Imagem: Reynisdrangar, Iceland – Annie Spratt

Eu tinha uns oito anos quando percebi a primeira pessoa negra.

Não é que eu não tenha visto negros antes, com certeza devo ter visto um garçon, um porteiro, um faxineiro no clube, mas eu não os notava.

Então meus pais contrataram uma empregada negra. Mal lembro dela. Era bonita. Parecia uma grande mãe larga e com aquele abraço capaz de aconchegar uma matilha de crianças como eu. Ela tinha um sorriso vasto e sincero, é assim que lembro dela.

Também lembro de ter nojo de comer a comida que ela fazia. Tinha medo do negro da pele dela escorrer para a comida em contato com a água.

Isso é uma grande vergonha em minha vida.

Em minha bolha não existiam negros, gays, lésbicas, comunistas, pessoas que viam ou viviam em um mundo diferente do meu, jovem branco, cis (só no século seguinte fui saber o que era cis), da classe média dominante da zona sul do Rio de Janeiro que vivia entre o colégio particular, clubes e casas de campo.

Agora dizem que a Internet nos coloca em bolhas e acho estranho pois uma certa vergonha da minha cegueira infantil e até juvenil não me deixam esquecer.

Como na vez que, já com uns 14 anos, chamei uma mulher na rua para lhe perguntar as horas e, quando aquela pessoa de cabelos batendo na cintura se virou, era um homem barbado. Fiquei desconcertado. Por que um homem tinha cabelo de mulher?

No entanto, a essa altura já havia lido Senhor dos Anéis que me abriu muitos horizontes. Me repreendi imediatamente: se ele quer usar cabelo grande que use.

Mas foi um choque de bolhas. Dos mais suaves, convenhamos.

Uma vez, eu me dava mal com meu pai e queria sair de casa, prestei concurso para uma escola interna do que hoje chamamos de ensino médio e não passei. Desolado saí andando pela Lagoa Rodrigo de Freitas pensando na vida. A tarde veio e a noite a dominou rapidamente deixando-me em outra bolha bem mais desconfortável: um grupo de homens rudes, operários acho, conversavam no caminho já escuro. Passei por eles pronto para morrer, mas nem fui notado.

Uma bolha pior envolveu um moleque de rua. Nessa eu devia ter 12 anos. Semanas antes dei uns trocados para um garoto de rua comprar um sorvete, daqueles que não derretiam (isso sumiu depois, devia ser cancerígeno demais, sei lá). Esqueci dele até que, passando entre dois carros estacionados na rua a caminho do meu curso de inglês, fui fechado por um pivete me pedindo dinheiro enquanto outro pulou nas minhas costas e ficou pendurado lá.

Estava negociando meu material de inglês, que não seria útil para eles, mas era importante para mim, quando o que estava nas minhas costas esticou a cabeça para frente a fim de ver meu rosto. Era o garoto do sorvete.

– Esse moleque é maneiro! Deixa ele ir!

E segui vários metros com ele ainda pendurado nas minhas costas. Era leve como uma pluma. Como seria a vida dele? A bolha dele? Não pensei tanto sobre isso na época como deveria.

Ainda nos reencontramos poucos anos depois, eu tinha uns 16 anos e voltava do primeiro Rock In Rio. Os olhos vermelhos da noite virada, o sangue nas veias limpo como água de riacho num vale perdido (a primeira e única vez que experimentei drogas já passava dos 30 anos). Nos cruzamos dentro da Galeria Menescal.

– Tá doidão, né maluco? – Por incrível que pareça fui capaz de reconhecê-lo. O mesmo moleque do sorvete que não derretia.

– Tô! Aí! – O que mais poderia dizer? Era mais seguro parecer fazer parte da bolha dele. Aprendi isso em algum momento entre os 12 e 16 anos.

Mais alguns anos, dois talvez, e eu ouviria que ele apareceu morto. Nem lembro por que brechas na minha bolha essa notícia chegou, mas o fato é que elas, as bolhas, vão se esbarrando mais frequentemente quando temos entre 16 e 20 e poucos anos para depois se afastarem de novo quando caímos (ou somos jogados) em nossos empregos, carros, apartamentos, famílias e amigos “embolhados”.

Agora ouço a todo momento falar do perigo das bolhas que se formam na Internet. Que as pessoas e cérebros eletrônicos que filtram o que veremos (ávidos para nos manter satisfeitos em suas páginas) se protegem dentro de bolhas, que as bolhas agora são mais opacas ou algo assim.

Olho para minha TL no FB, para o fluxo no Twitter e nem me dou ao trabalho de repassar mentalmente as multidões que conheci online e hoje fazem parte dos minhas interações offline pois a todo momento vejo muito mais diversidade que os meus pais sonharam no século passado.

Talvez meus pais fossem pessoas antissociais, mas lembro dos meus amiguinhos com suas casas na Ogiva, Búzios, Angra dos Reis, alguns tinham mordomos, outros nunca viam os pais que trabalhavam 24/7 (ou não gostavam muito da bolha “família com filhos).

Enquanto isso, no século XXI, Minhas TLs (que são bem filtradas, viu?) encontro religiosos ferrenhos (sou ateu, bem ateu), petralhas, coxinhas (sou meio anarquista, sei lá eu a essas alturas), veganos, carnívoros, budistas, odiadores e adoradores da Globo, do consumo, do minimalismo…

Mas não vamos recorrer a evidências anedóticas, né? Quem sou eu para servir de padrão?

Meus amigos.

A todo momento vejo um amigo desistindo do FB (e volta logo depois) porque não aguenta mais tanta discórdia.

São discórdias como aquelas tantas que vivi no século passado quando bolhas se chocavam misturando seus conteúdos. Farpas e faíscas para todo lado.

Quem sou eu… Quem sou eu, né? para duvidar das pesquisas, dos livros que são publicados alertado para os perigos das bolhas que estão se formando, essas terríveis ilhas entre as quais correm águas turbulentas e que, supostamente, impedem um mundo melhor onde as pessoas saem das suas bolhas e vão a outras.

O morador de rua que vai almoçar com o grande empresário, o traficante que joga futebol com o delegado de polícia, o político corrupto que frequenta o clube com o juiz… Ops! Esses aí eu vi muito desde criança!