A conversa anda em círculos sem que ninguém se incomode com isso porque os sabores dos mesmos assuntos vão mudando. Falam sobre saúde de um jeito, de música de um jeito, de vídeos de gatinhos de um jeito e voltam a falar de tudo de outros jeitos.

Assim como podemos ler o mesmo livro várias vezes e encontrar sempre novos sentidos de acordo com a nossa experiência ou mesmo o nosso humor no período também os papos de pessoas amigas… Bem, o que realmente dá cor a esses encontros é a amizade, pois esse reunião é assim, amizades verdadeiras.

No entanto há uma névoa densa fluindo entre as vozes ora animadas, ora sérias. Um assunto que ninguém quer abordar: o relacionamento abusivo em que Alê está entrando ainda sem perceber.

Talvez o assunto não seja tão difícil apenas porque sempre é delicado dizer para alguém que aquele relacionamento é abusivo, afinal, seja parente, namoro, amizade o relacionamento abusivo sempre parece ter algo de sublime e ser parte essencial das bases da vida da pessoa.

Acontece que, além disso, não nos livramos de um relacionamento abusivo confrontando-o. Só nos livramos da perversidade ignorando-a. Virando as costas e partindo sem explicações, sem ouvir as barganhas que nos oferecem e, principalmente, a indignação que procuram despertar em nós.

Então ninguém no grupo está falando do assunto porque também se percebem em um relacionamento abusivo. Com a sociedade.

– Gente… Tô com uma irritação sem tamanho! Como o governo pode destruir assim o sistema educacional, a economia e ainda conceder a si mesmos medalhas de honra, cargos para amigos incompetentes em órgãos que lidam com milhões de reais passando por cima de tudo que é juridicamente legal ou humanamente moral? E no Twitter? Eu… Gente, eu andei respondendo! Tô comentando também e isso tá destruindo o meu emocional.

Foi uma enxurrada inesperada entre um vídeo de gatinho e um meme do Thor. Um silêncio envolveu o grupo, cabeças oscilando lentamente em acordo e olhos se desviando para cima buscando memórias que se conectam ao desabafo.

É justamente Alê que fala primeiro soltando o ar lentamente.

– A gente tá no inferno, né, não? Até pessoas que aprendemos a admirar, pessoas em quem depositamos parte das nossas forças ou estão loucas se unindo ao discurso perverso do governo, que, de boa, tá lá porque a maioria pelo menos atura, isso se não acha normal tanto ódio…

Todos os olhos se volta para Alê. Já notou que olhos nos dizem muito se olhamos com atenção? Metade daqueles olhares esperavam que caísse a ficha naquela hora e o olhar rápido para baixo pode significar que sim, mas um problema maior se apresentava ao grupo: como sobreviver nessa ruína?

– Sabe o que é foda? Que não há nada que a gente possa dizer para mudar essas coisas! O governo… Quem dera o governo ignorasse as críticas, ele demoniza as críticas e convida seus loucos seguidores a hostilizar seus inimigos. As pessoas comuns que colocam o amor de Deus na bio no Twitter e no Facebook, mas desejam que a gente tenha nossas entranhas estraçalhadas quando perguntamos onde que elas viram que universidade era antro de imoralidade são ainda mais refratárias e são incansáveis em nos hostilizar! Tem que ter um jeito de levar razão a esse pessoal, não é possível que sejam zumbis tomados por maldade!

– Minha TL tá cheia de gente mostrando as conquistas acadêmicas desenvolvidas em nossas universidades públicas, os avanços das escolas fundamentais e que há muito a ser conquistado, que precisa de muito mais investimento em vez de cortes, mas…

– … Mas é que nem terraplanista, né? Há anos as pessoas fazem vídeos, posts, documentários… E eles só cresceram.

– The Gift of Fear…

– Hein?

– É um livro sobre como lidar com gente perversa, principalmente stalkers, mas aborda a essência da parada, mostra o perfil desses perversos, mostra que tudo que eles querem é a nossa atenção, nos sequestrar para o mundo deles. Acham que somos o sentido da vida deles, às vezes dizem que nos amam, mas logo nos maltratam, para logo depois jogar a culpa em nós que, em desespero, tentamos argumentar com razão, mas ela não lhes importa, mal nos ouvem, apenas pescam um novo gancho para nos indignar.

São amizades antigas e cada voz se encaixa na anterior formando um discurso coerente.

Novo silêncio se instala, Alê entreabre os lábios, está recebendo uma ligação justamente do relacionamento perverso que preocupa o grupo. Com um movimento do dedo rejeita a ligação. “Não quero falar agora, ligo quando quiser.” é a mensagem pré-configura que decide enviar.

– Sequestrar a nossa atenção…

– Não estão escutando realmente o que estamos dizendo…

– Essa é uma guerra que não podemos vencer atacando diretamente o inimigo, né?

– Tem horas que só virar as costas e olhar para outro mundo, para o nosso mundo, pode nos salvar da guer… do caos. Não é uma guerra, é uma armadilha né?

– Sem perceber, em vez de falar da necessidade de um ensino crítico, criativo, generalista e filosófico para um mundo em que cada vez mais empregos intelectuais vão para robôs, e isso não é scifi, né gente? Já tá acontecendo!

– … Estamos tentando provar para perversos que o nazismo era de direita e não de esquerda… Aliás, como se isso fizesse alguma diferença agora! Como se um fascismo de direita fosse diferente de um fascismo de esquerda ou até mesmo…

– … ou até mesmo se estamos diante de um governo de direita ou de esquerda quando parece mais um governo de “quero meu quinhão dos espólios do dinheiro tomado da população”.

– E medalhas! Não esqueçam das medalhas!

Uma onda de gargalhada cínica circula em ondas pelo grupo, as mesas ao redor não entendem nada, um grupo tão ameaçadoramente feliz.

– Que se foda! Eu tô entrando em um relacionamento abusivo, né gente? Pera que vou… – Os amigos tentam impedir, mas Alê levanta uma mão enquanto desliza o dedo pelo teclado virtual – Pronto, Disse que não tô numa vibe boa, que ligo outro dia. Vou enrolando e afastando. Vocês ajudam a evitar recaídas e “stalkeamentos”?

A música do andar de cima consegue furar o bloqueio da seriedade do grupo e metade sobe para dançar enquanto a outra metade mergulha animadamente em uma discussão sobre semiótica que logo resvalará para biohacking, Lovecraft, Erich Fromm… Há obstáculos que não são vencidos por guerras que destroem os inimigos, mas pela construção do conhecimento que torna as guerras inviáveis.

Esse post pode ter alguma influência de Fundação, do Isaac Asimov.

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