Sobre o projeto Um Sábado, Um Conto

Advertência: se você for menor mostre esse conto ao seu responsável antes de ler. Ele tem temática adulta.

Esse é o sétimo conto do projeto #UmSábadoUmConto (Post explicando o projeto)

Durante a semana as pessoas votam em estilo, gênero, público e época. O autor só pode saber o resultado às 8h de sábado e tem até meio dia para terminar o conto (esse foi até as 13h).

Cada conto é escrito com uma processo criativo diferente (veja no final).

O conto acontece na era vitoriana.

O que você vê a seguir é o conto com a mínima revisão. Você pode ler em estado bruto no Google Docs.

O Conto

Ela parece um feixe de luz verde cruzando na noite escura velozmente, correndo com segurança apesar dos saltos altos. O verde vem dos reflexos no tecido do seu vestido. Os cabelos vermelhos começam a se revoltar na cabeça, soltando-se enquanto segue em disparada seguindo pela viela mais escura.

John é despertado do seu torpor pelo martelar dos passos quando ela entra na viela onde ele está jogado no fluxo pútrido de água escura que corre pelo calçamento de paralelepípedo. O líquido passa por seus lábios com um sabor salgado e ocre. Ele não tem certeza se a moça que passa é real ou mais uma imagem do ópio que ainda persiste nas brumas por trás do seu olhar lento. No entanto sua mente está acelerada.

Duas pessoas passam por ele logo depois da moça cujo rosto ele chega a ver como se tivesse se congelado diante dele. Ela não tem medo, há um certo prazer no brilho dos olhos dela, mas corre assim mesmo… E solta o prendedor do cabelo escondendo-o sob a manga comprida de tecido verde e brilhante.

Os que seguem em perseguição são um homem e uma mulher, mas há mais… As sombras da viela tremulam de um jeito estranho, elas parecem fluir como a água, mas em sentido oposto, vindo da escuridão onde a primeira mulher desapareceu e se espalhando pelas paredes, pela rua suja, ao redor dos pés dos perseguidores até que a mulher parece escorregar, ou tropeçar e cair violentamente contra a parede fazendo um barulho, um estalo que desperta John do seu estado de letargia. Ela rosna como uma fera segurando o braço solto ao lado do corpo e não consegue se levantar pois seu tornozelo está virado como se fosse uma quina de mesa. Um fiapo de sangue escorre do seu nariz.

O homem continua sua perseguição sem se importar com a mulher que fica para trás, ambos com o olhar repleto de ódio.

John se levanta escutando os passos se afastarem e se aproxima cautelosamente da mulher sentada ofegante e ferida diante dele. Nos olhos dela ele não vê medo, apenas uma escuridão profunda. A mesma escuridão que parece cercá-la cada vez mais. Ele esfrega os olhos com as mãos imundas deixando o próprio rosto ainda mais empesteado. Seus olhos azuis formam um estranho contraste no meio daquela podridão que é seu corpo e sua mente. Ele se lembra por um instante da família que deixou para trás em uma bela mansão não muito longe de Londres, a cidade onde ele procura se perder dele mesmo. Eles provavelmente nem sabem se ele vive, se morre lentamente ou se já se entregou às profundezas rubras da morte.

A respiração da mulher está cada vez mais acelerada em vez de se suavizar, é como se ela estivesse em trabalho de parto, mas não é a uma criança que ela dará a luz, ela não dará luz a nada. Não são apenas suas vestes e seus olhos que são negros como o carvão molhado que é incapaz de se tornar em brasas. Sua pele é acinzentada? Ou está ficando assim conforme as sombras se movem em um lento turbilhão ao seu redor, convergindo das águas na sarjeta, das paredes ao redor.

O negro olhar da mulher começa a se tornar distante. Não há dor, há entrega, há vazio, um vazio furioso, um vazio que ameaça puxar John, um vazio que aumenta. Sim… Os olhos da mulher parecem um par de redemoinhos de óleo negro, cada vez maiores, certamente maiores do que olhos normais.

John tenta se afastar, mas não consegue, ele é atraído pelas trevas diante dele dentro daqueles olhos que já parecem do tamanho de laranjas cobertas de mofo – é impossível pensar na cor laranja nesse momento, é impossível lembrar da luz – John se surpreende ao perceber que suas mãos estão ao redor do pescoço frio, mas macio da mulher apertando cada vez mais. Ela engasga, tem espasmos, mas ele não se importa. Não é que seu corpo não lhe obedeça, ele simplesmente precisa fazer aquilo, ele precisa apagar aquela chama negra que começa a subir pelas suas mãos até que a mulher tem um último espasmo e seu rosto volta ao normal… As sombras escorrem de volta para ela dos braços de John e só então ele percebe que ainda ouve passos morrendo ao longe na direção que os outros dois tomaram.

Ele dá dois passos para trás observando a morta diante dele, uma mulher protestante pelas vestes, com certeza… Olhando para a direita ele vê a rua mais iluminada, mas a luz parece cansada, enevoada. As poucas pessoas que passam por lá não olham para a viela. À esquerda só existe a escuridão da viela que ele nem mesmo sabe onde vai dar, mas é para onde seus passos o levam. Primeiro indecisos, trôpegos, depois cada vez mais firmes e rápidos até que alcança o homem parado em uma bifurcação tentando decidir em qual deles sua vítima deve ter entrado.

Ao ser visto John começa a cantar uma das músicas que drogados cantam e pede dinheiro ao homem, ele sabe que isso o fará ignorá-lo como mais um maluco moribundo das ruas… Mas ele realmente é apenas mais um maluco moribundo das ruas…

Quando o homem se vira a mulher aproveita a distração e sai das sombras sorrateiramente, descalça para não produzir nenhum ruído. Seus pés brancos como a neve contrastam com a lama negra que começa a cobri-los conforme ela corre silenciosamente em direção ao seu perseguidor. O prendedor de cabelo em punho.

John a olha involuntariamente dando ao homem uma fração de segundo para perceber e se virar ferozmente girando o braço para acertar o punho no que quer que esteja vindo atrás dele sem se importar se é a mulher, uma criança ou um policial. A moça se atira sobre ele cravando o prendedor em sua coxa e puxando antes que ele possa esboçar uma segunda reação. O sangue jorra da ferida, mas o homem ri e consegue arremessar a jovem contra a parede com violência deixando-a desorientada por tempo suficiente para agarrar seus braços contra as pedras enegrecidas atrás dela.

A moça parece não ter mais de vinte anos, ela lança um sorriso estranho para o homem, há um prazer sádico em seus olhos, ela lambe os lábios como quem saboreia um resto de mel que se prendeu a eles. John se surpreende com a suavidade da voz que diz “Isso não precisa acabar agora bonitão… Vem… Me bate! Mostra que é homem!”

Em resposta ele bate com a mão dela contra a parede fazendo-a soltar o afiado prendedor de cabelo que gira duas vezes antes da sua lâmina de metal frio atingir o chão na poça de sangue que já se formou jorrando da perna do homem. Os lábios da moça tremem com a dor, mas os olhos continuam repletos de luxúria e prazer “Mais!!” ela diz com sua voz que traz um pouco do dia longe das noites enevoadas de Londres.

O homem solta a mão direita da moça e acerta o rosto liso e alvo dela com força fazendo-a virar para e esquerda, mas a mão dela encontra agilmente outro prendedor no cabelo e penetra profundamente o pescoço do homem. O sangue espirra no rosto e no vestido dela. Com o pé ela o empurra contra a parede oposta. Tão logo ele se choca contra as pedras frias ela já está sobre ele segurando sua cabeça pelos cabelos e batendo com sua nuca contra a parede várias vezes até que a consciência o abandona e ele escorregue para a mancha vermelha que o fluxo da água ainda não conseguiu diluir.

– Catherine, e você senhor, como se chama? – Ela diz olhando para John.

Ela limpa as duas lâminas nas próprias roupas e as coloca de volta no cabelo mal arrumado.

– Não precisa ter medo de mim, se você ficar aqui eles o matarão. Venha, mas antes… Qual é seu nome?

Ela está parada empertigada como uma jovem nobre que teve aulas de ballet, o braço direito esticado, a mão pálida aberta esperando pela mão de John. Os dedos levemente flexionados e movendo-se suavemente. Seu rosto livre do sadismo e da luxuria que ele acabou de testemunhar. Ela parece uma criança, poderia ser sua filha… Ao redor sombras parecem fluir novamente de tudo ao redor, convergindo para eles dois, sombras deixando o homem que jaz (já morto?) ao lado da moça de vestido verde, cabelos ruivos e pele alva.

Ela olha para os lados com uma leve preocupação, estará vendo as sombras também?

– Vamos, senhor. O tempo está terminando – e ela sorri como quem está prestes a jogar uma divertida partida de críquete e não como quem acaba de matar um homem em uma viela escura e pobre (raios, tudo é podre nesse mundo?) cercada de sombras vivas e chamando um estranho para ir com ela.

– John… Eu me chamo John senhorita – Sua voz saiu trêmula, indecisa.

Ela se estica, segura o seu braço e o puxa dizendo apenas “Corra”, mas ainda encontra tempo para pegar os sapatos que tinha deixado numa reentrância na viela onde estivera escondida para tocaiar seu perseguidor.

Na pocilga

A jovem corre com facilidade, como se o chão não fosse realmente sólido para ela, como se fosse um gramado macio e as paredes, vielas e postes passam ligeiros pelos dois, a respiração de John queima, mas ele não se atreve a parar sentindo que as sombras ainda os seguem pelas paredes, nos limites das luzes dos postes e a moça segura seu braço com força obrigando-o a seguir seu ritmo.

– Ali! Atrás daquela porta estaremos seguros! – A moça faz uma curva para a esquerda na direção de uma escada que desce meia dúzia de degraus e termina em uma porta com uma argola de metal enferrujada. Ela se atira contra a madeira abrindo uma fresta e fazendo dobradiças enferrujadas guincharem como uma ninhada de ratos.

Dentro do lugar John vê alguns porcos, é uma pocilga sob um açougue talvez. Os porcos não parecem se incomodar muito com a entrada deles. Catherine acende rapidamente várias lamparinas que se espalham pelo lugar inteiro. O cheiro ali seria insuportável se John não fedesse muito mais e se já não tivesse deixado de se importar com isso há muito tempo, entregue à espera da morte em um mundo sem sentido e agora cada vez pior…

Quando sua família protestante e temente a Deus o mandou para a Universidade a fim de estudar medicina não imaginava o inferno em que o estava atirando.

John foi criado na segurança de um lar moral, alheio ao mal do mundo. Aprendeu a reprimir seus impulsos desde cedo graças ao ar austero da mãe e as marcas deixadas pelas chicotadas do pai em suas nádegas quando ele violava algum bom princípio cristão.

A moça diante dele olhando com curiosidade para seu rosto, virando a cabeça para um lado e para o outro como se fosse um pardal poderia ser sua filha. Sim… Ele tinha se casado, mas isso foi logo ao final da universidade há 20 anos. A última tentativa de se livrar do pesadelo dos questionamentos em que ele foi atirado pelo conflito entre sua educação familiar e as heréticas promessas da ciência de prolongar a vida, de restaurar o Anima Mundi a corpos mortos e até criar vida da matéria inanimada…

– O que aconteceu com a mulher? – Catherine chegou seu rosto tão perto do dele que por um momento seus narizes quase se tocaram. Ela olhava analiticamente para os seus olhos – O que você fez com ela?

John gaguejava para dizer que apenas a viu cair, tropeçar, só que se feriu demais, como alguém se fere tanto em um mero tombo? O braço, o tornozelo destruído, os olhos… O que aconteceu com os olhos dela? John balbuciava e perdia controle do que estava dizendo… “Minhas mãos em seu pescoço, eu não… não foi de propósito… Foram as minhas mãos… E as sombras… Elas me apertavam também… As sombras”.

Catherine agora o olhava como sua filha uma vez olhou para um tordo com o pescoço quebrado que se agarrava aos últimos fiapos de vida. Havia compaixão e um carinho que somente as crianças tem. Na ocasião John não foi capaz de abreviar o sofrimento do animal. Hoje ele teria feito isso, mas não diante da sua filha que o olhava pedindo com a expressão do rosto que ele salvasse o pobre pássaro. Será que Catherine será tão compreensiva? Será que ela notará que ele também é um ser moribundo, mas, ao contrário dele que deixou a ave morrer, lhe dará um fim rápido e indolor?

Foi naquele dia que John procurou os braços do ópio pela primeira vez, para tentar fugir para um mundo onde seus questionamentos não o perseguissem… Só piorou… Mergulhado no submundo do ópio encontrou um universo infinito de outras crenças e mitologias até que se convenceu de que era tudo invenção de mentes fracas como a dele, que a humanidade não passa de animais disputando poder para poder ter prazer, que no íntimo seus pais sentiam desprezo pelos infiéis e se sentiam superiores tanto quanto seus colegas cientistas se sentiam acima de todos os tolos que acreditavam no sobrenatural. Outros não se davam ao trabalho dessas complexidades religiosas ou científicas escolhendo casualmente uma ou outra por mera conveniência, como quem não tem preferências por nenhuma cor, mas escolhe azul para declarar como predileta nos papos casuais pois todos precisam ter uma cor de preferência, mas na realidade eles só buscam ter mais dinheiro, poder sobre sua mulher, seu homem ou ou sobre seus subalternos. Um poder perverso… Tudo para se sentirem poderosos senhores da Terra.

– Você a matou então? Bom! Muito bom!

Catherine olha rapidamente para os lados, os cabelos rubros como o crepúsculo seguem seus movimentos como se fossem chamas em sua cabeça.

– Essa noite é a última chance. Se eu não estou muito enganada você tem um nome que pode nos levar para onde temos que ir, para a festa do Conde de Cardif. Não pode ser coincidência ter esbarrado com você hoje. As sombras! Você vê as sombras, não é? Qual é seu sobrenome? Vamos, senhor! Já está na hora de acordar!

– Gainsborough. Sou John Gainsborough. Minha família tem relações com a do conde, mas devem achar que estou morto ou pior… Bem, estou pior, não é mesmo? E sinto que vou morrer hoje. Finalmente vou morrer…

– Pode ser nobre Gainsborough, mas não antes de me ajudar com uma coisinha de nada. Sabe, eu nasci nas ruas. Quando me lembro de ser alguma coisa eu andava sozinha pelo mercado dos peixes. É claro que devo ter nascido de alguém, mas devem ter me jogado na rua, sei lá. Não tenho nome e minha aparência nobre não passa de disfarce que aprendi observando as moças saltando de suas carruagens enquanto eu vendia flores para seus cavalheiros lhes presentearem. Os dois que me perseguiam foram avisados pelas sombras das minhas intenções. Você está acompanhando?

John fez que sim com a cabeça, mas era apenas medo de ser torturado se não estivesse entendendo.

Catherine lhe falava de como as pessoas como ele não estavam preparadas para a realidade, que somente quem veio ao mundo sem um nome, sem um teto, tinha força para ver o mundo de verdade.

Enquanto ela falava o coração de John parecia prestes a quebrar suas costelas tamanha a força com que batia. Ele percebia que o mundo negro obscuro em que vinha mergulhando nos últimos dez anos não era uma podridão artificial criada pela humanidade, era o estado natural do Universo, o caos… E a podridão: apenas a forma humana de lidar com o caos.

Seu peito doía, sua mente parecia derreter dentro do seu cérebro percebendo que ele foi apenas o primeiro da família e que logo o caos devoraria também suas filhas, sua esposa que, ele tinha visto outro dia ao se esgueirar diante da casa, ainda chorava por ele.

–  Banho, umas roupas e você vai nos colocar lá dentro porque conhece os códigos internos, as formas como a gente deve falar quando estamos apenas com os nobres e as pessoas normais como eu não podem ver.

Catherine lhe deu banho com as próprias mãos removendo cada placa de podridão de seu corpo que, surpreendentemente não tinha pústulas ou mesmo feridas. Ao redor ele via sinais de que algo terrível tinha acontecido ali o que explicava a ausência do açougueiro e sua família. Quando tomou coragem e perguntou Catherine simplesmente disse que coisas ruins acontecem a adúlteros.

John se deixava conduzir por Catherine como um fantoche. Ela o vestiu e preparou de acordo com sua extirpe. “Acredite em mim, eles não vão ligar se você foi dado como morto ou como assassino, eles querem a possibilidade de ter relações com suas posses” foi o que ela lhe disse diante do medo de se identificar à porta do Conde de Cardif.

Já diante da mansão John se tranquilizou. Sabia que sua esposa viúva ou mesmo suas filhas não poderiam estar ali. Pelas pessoas que entravam era claramente uma festa de negócios onde apenas homens e concubinas podiam entrar. Não haveria mulheres respeitáveis ali e Catherine seria a sua mulher da vida, uma das mais lindas que ele jamais teve a chance de ver, só agora ele percebia sob a luz e calor que emanavam das janelas da mansão.

– John Gainsborough e Catherine, meu caro, pode nos anunciar e, por gentileza, tome meu chapéu e casaco. Catherine, sua estola, por obséquio.

O linguajar é nobre, mas no interior da mansão a cena remete a Baco e suas bacantes. Há uma antessala onde tudo parece civilizado, mas logo depois dela há máscaras que os convidados podem pegar se não levaram as suas, apenas mais uma forma de se iludir pois todos são capazes de se reconhecer.

Numa sala lateral duas mulheres seguram uma terceira que grita em pânico genuíno enquanto é possuída por vários homens e lentamente estrangulada por um dispositivo que pende do teto até que sua voz começa a engasgar e falhar deixando as pessoas entregues a um crescente frenesi. John vira a cara e tenta seguir, mas Catherine o detém observando a cena até o final quando aperta seu braço com mais força dizendo “Ali! Olhe! agora!”

As pessoas parecem alheias ao fato, mas uma sombra parece se soltar da mulher, consumindo seus últimos suspiros de vida e fluindo lentamente para seus algozes, tornando seus olhos negros como o da mulher que John estrangulou lentamente na viela poucas horas antes.

John olha para as outras salas à volta e percebe que aquela não é a cena mais grotesca da festa. Enquanto alguns homens discutem negócios servindo-se de bebidas fortes, estupros, assassinatos e torturas terríveis são perpetradas ao seu redor. Os gritos, gemidos e suspiros parecem energiza-los e todos tem a pele estranhamente tingida pelo cinza das sombras que invadem o lugar vastamente iluminado.

Catherine o solta e diz apenas “Você saberá o que fazer…”

Ela entra na primeira sala, atira longe sua máscara, segura uma mulher pelo pescoço com firmeza empurrando-a contra o homem atrás dela. Ao lado jaz a mulher morta ainda servindo aos prazeres dos homens que se revezam. Ela aumenta a pressão contra o pescoço enquanto beija voluptuosamente a mulher perplexa. Sua outra mão explora o corpo do homem até chegar ao seu rosto. Ela descarta a mulher para o lado, morta ou desmaiada, John não consegue perceber, e beija o homem cujos olhos negros se afrouxam de prazer.

Catherine parece beber da maldade, da luxúria de cada um deles atraindo-os como o flautista atraía os ratos. Ela segue entre as salas livrando-se das suas roupas e se entregando aos pecados que encontra em cada coração negro. Usando as lâminas que traz em seus cabelos corta a própria pele oferecendo seu sangue para eles, desenha marcas nos peitos nus que se deitam sobre ela possuindo-a com violência, mas seu corpo suporta a tudo. As lâminas escolhem alguns aleatoriamente para tingir de vermelho o altar em que ela está transformando a casa, corpos de homens e mulheres jovens e velhos são deixados para trás ainda com jatos de sangue fluindo dos seus pescoços.

Todos seguem o feitiço de Catherine, John vê as sombras vertendo primeiro lentamente para dentro da casa pelas frestas das janelas como se a casa estivesse mergulhada em um profundo lago de sombras até que os vidros explodem, as portas se rompem e as sombras formam um jorro tão volumoso que John ouve o barulho como de uma cachoeira ou de corredeiras.

As sombras seguem em direção a Catherine que é um ponto de luz cercado de corpos obscuros em movimentos peristálticos como uma profunda garganta. Seus braços e pernas nus estão abertos e sangram enquanto seu séquito se serve sedento da sua vitalidade.

Ela está há talvez vinte metros de John, mas suas voz caminha até ele suave como a brisa de primavera e é como se ela falasse ao seu ouvido, ele praticamente sente a respiração quente em seu pescoço e se arrepia.

– As trevas precisam ser contidas agora. Alguém que conhece a luz e o caos precisa absorvê-las e impedir que se libertem novamente. A humanidade precisa ser livre para criar o próprio caos e aprender a dissolvê-lo sem a influência das trevas que nos cercam. Alguém precisa ficar para sorver cada bruma do caos primordial e mantê-lo preso, essa será nossa última chance. A primeira e última.

A luz em torno de Catherine começa a se apagar lentamente, os homens e mulheres que castigam seu corpo física e sexualmente, que entregam o próprio sangue e de outros sobre sua boca suave e tingem de vermelho arterial sua pele branca parecem se tornar as águas podres que cruzam as sarjetas das ruas esquecidas de Londres.

John quebra as luminárias a gás da casa enquanto corre para a porta chorando sem saber se é por sua própria alma, pela de Catherine ou mesmo das pessoas naquele festim diabólico.

Ao chegar ao hall agora vazio, o cheiro de gás já turvando seus pensamentos, ele olha para a sala o fundo e a única luz que vem de lá emana do corpo de Catherine, agora vermelho como seus cabelos. John não se importa mais com ele mesmo. Acha um charuto ainda em brasa e o usa para atear fogo a um lenço de algodão. Quando o arremessa para o corredor cheio de gás o ar se incendeia jogando seu corpo com violência para trás fazendo-o atravessar a porta e ser atirado à rua deserta ao lado de uma sarjeta novamente.

As chamas sobem pelas paredes com violência, há gritos, mas os mais altos são de prazer, um prazer que faz a coluna de John tremer e congelar. As trevas ainda penetram as chamas procurando o ponto central do vórtex que as suga, o corpo que abraçou tão completamente a podridão que se transformou em um sorvedouro, o corpo que agora queima dentro daquele lugar maldito.

John se arrasta para trás sentado, se afastando o calor e das sombras que não param de convergir para o lugar. Os gritos não cessam, ele acha que para pessoas que tem ouvidos como os dele não cessarão jamais.

Horas passam, o fogo já consumiu tudo que havia na casa, mas as sombras parecem alimentá-lo. Bombeiros e civis tenham aplacar sua fúria sem sucesso.

John não pode se mexer. Ele precisa ficar parado para tentar fixar em sua mente o que aconteceu, se convencer que não foi tudo alucinação e que ele sequer entrou na casa, mas as roupas que usa são uma evidência e é então que ele vê. Somente ele vê…

Vindo do meio das chamas um corpo nu, claro como o cristal, caminha em sua direção com os cabelos vermelhos esvoaçando pelo efeito do ar quente do fogo ao seu redor. Ela chega até ele, aproxima seu rosto do seu pescoço e inspira profundamente. Seus dedos suaves caminham por sua face. Ela se ajoelha entre suas pernas. Ele sente os seios contra seu peito e as coxas ao redor da sua perna. Ele sente uma pontada profunda, uma excitação que nunca havia sentido antes e percebe que seu sangue escorre quente por um segundo, mas é estancado logo em seguida.

– John Gainsborough, nem eu, nem os que vierem de mim jamais se esqueço do cheiro do seu sangue e manterão intocada sua descendência, esse é meu último ato de humanidade e gratidão. Vá Buscar sua família pois vocês tem outro caos para cuidar.

Ela toma seu casaco, se veste com ele, caminha alguns passos em direção a um bombeiro que só então a nota e ela parece desmaiar sendo levada por ele logo em seguida. John percebe que as sombras continuam convergindo para ela deixando o ar cada vez mais leve conforme ela desaparece em uma ambulância e some da sua vista.

Sobre o conto

Dois votos! Hahahaha!! Sempre tenho menos votos do que gente assistindo. A mente humana é um universo de surpresas, né? Porque será que as pessoas se interessam nos contos, nas não votam, né?

Para mim não tem realmente grande problema, só é mais divertido quando mais gente vota porque fica mais imprevisível.

As duas pessoas (elas se identificaram) são até parecidas! Ambas pediram fantasia, adulto no passado, mas a menina quer terror e o rapaz aventura.

Então vou atender os dois. Uma aventura de terror adulta no passado e de fantasia.

Dessa vez quero fazer adulto mais adulto. Tenho achado que estou pegando muito leve na temática adulta.

Ah! Vou mudar bastante a estratégia também. Notei que, com 4h para escrever o conto não dá para ficar fazendo muita introdução. A coisa precisa começar meio que no meio, já com alguma coisa acontecendo para dar tempo de concluir em 4h.

Processo Criativo

Cada conto é um processo diferente, pelo menos nos 12 ou 14 primeiros. Vou ver na minha listinha um que eu não tenha usado ainda.

Estou em dúvida entre dois… Pegar um personagem interessante e construir ao redor dele ou pegar uma frase chave e fazer o conto em torno dela.

Os dois são bons para terror, mas mudam bastante o tom do conto. No primeiro caso o que vai acontecer é menos previsível e o conto provavelmente vai girar em torno da superação humana, no segundo caso tende a abordar questôes morais, éticas ou existenciais.

Eu devia pensar num jeito de decidir isso colaborativamente também hehehe! Cheio de dúvida hoje, mas estou com vontade de fazer uma personagem feminina. Gosto de escrever mulheres. Em parte porque acho que elas me permitem falar de coisas de homem e de mulher… Se bem que isso é uma limitação tola… Tá aí! Vou fazer isso com um personagem masculino. É um pouco mais difícil para mim, mas, pombas, eu inventei de escrever um conto inteiro em 4h só sabendo sobre o que é na hora que começo não é porque quero fazer do jeito fácil, né?

Um homem então… Ele terá mais de quarenta. Faço isso para ajudar minha imaginação a sintonizar em uma temática mais adulta (se bem que homens muitas vezes permanecem infantis por toda a vida). Ele acaba de chegar aos quarenta, no máximo 42 para dar um distanciamento de mim.

Tá parecendo que vou fazer em torno do personagem, né? Mas ele ainda está muuuuuuito xoxo. Talvez ainda apareça uma frase…

É de terror… E é aventura… Ah! E no passado!! Já andaram pedindo era vitoriana que é um estilo que não estou muito pronto para escrever pois o respeito muito e acho que precisa de pesquisa para ficar bom usando nomes, fatos, datas e locais reais da época. Seja como for quero fazer pelo menos cem anos no passado… Mas pode ser mil, né?

Tem ainda a fantasia. Normalmente isso puxa para um mundo alternativo, mas dá para fazer no nosso mesmo.

[8:39]Agora preciso dar uma parada para deixar a cabeça voar e descobrir uma frase boa ou tornar esse personagem aí mais interessante… É que tá dif?cil me concentrar… A mente está indisciplinada… Tô querendo fazer no Renascimento (séculos XIV a XVII) que é bom pois seu finalzinho pega o começo da era científica, ou na era Vitoriana que (fim do século XIX) que é ótima para terror, aventura e fantasia, mas tenho receio de cometer uns erros históricos grosseiros…[8:48]

[8:57]Acho que já sei… Nosso protagonista é um anti-herói. Viciado em drogas, ópio que era comum na era Vitoriana. Ele tem pouco mais de quarenta anos, é alguém que está entre o povo, mas não nasceu no povo, sabe ler e escrever, teve acesso à educação e às obras clássicas, mas foi mergulhando na loucura primeiro por sua estupefação diante do conflito entre o mundo das crenças e o das ciências a que ele teve acesso. Sua percepção da realidade está prejudicada ou talvez ele a veja bem demais. Ele não sabe, ele nem se importa. Sua vida não lhe importa mais, só se entorpecer enquanto a morte não chega pois ele jamais se mataria com medo das consequências, com medo de se tornar um espírito errante na Terra em vielas podres e escuras como as que ele está acostumado conhecer com seu rosto se esfregando em suas podridões quando ele cai ou é jogado expulso de algum lugar. Ele assiste das sombras coisas acontecerem, pessoas passarem, vidas serem tiradas com violência. Ninguém se importa com o traste humano jogado nas sarjetas, encostado nas paredes imundas com o olhar sem vida perdido no horizonte, mas ele vê, ele ouve, ele sente. Essa história será a da jornada dele para as profundezas da loucura ou sua libertação dela. Já tem um quadro geral se formando… Mais uma pausa para divagar e começo o conto[9:07]

[9:12]Acho que esse conto vai ficar pesado… Menores de 18, por favor, mostrem aos seus tutores antes para saber se devem ler, ok? Deve ter alguns aspectos perversos da natureza humana que só conseguimos observar de forma mais saudável com um pouco mais de experiência de vida[9:14]

Críticas, sugestões, perguntas, comentários: