Copacabana à noite, as esquinas parecem ganhar bares novos com mesas precárias de metal, salgadinhos gordurosos e uma população estranha às boates chiques. Gente que fica satisfeita com uns torresmos de porco, muita cerveja, cigarros, funk e aquele papo cheio de insinuações e generosos em filosofia barata de quem fala apenas para se socializar.
“Dança da motinha! Dança da motinha!! As popozuda perde a linha!”
Mais alto que o som do bar uma linda moça, quase uma menina, canta e rebola com as amigas fazendo a alegria dos homens ao redor. Os cabelos castanhos encaracolados rebolam no mesmo ritmo até que ela se atira na cadeira desajeitadamente, jogando a cabeça para trás. Cachos colados graciosamente no suor da testa e uma gargalhada infantil voltada para cima como se fosse comer as estrelas no céu.
O planeta inteiro gira mais lento e pesado imerso em crises e nuvens escuras se acumulam no horizonte prometendo um futuro turbulento e aquelas pessoas ali… Alienadas em sua alegria vazia.
– Ela é linda, né? A Carlinha…
Olho para o lado e lá está ele… Um velho amigo que não via há meses. Bem, não exatamente um amigo.
Lá se vão quase quatro anos desde que encontrei pela primeira vez com o Gato de Botas. Foi diante de uma igreja onde Cérbero andava dormindo na época.
Desde então, segundo os próprios caprichos ele vem e vai da minha vida. Sempre me deixando a impressão de estar se divertindo com a minha ingenuidade.
– Você conhece… Ou melhor a moça te conhece? – Eu pergunto intrigado, mas ele não responde. Simplesmente se dirige até a mesa cumprimentando os outros e colando o focinho peludo no pescoço suado da moça que ri reclamando das cócegas e o abraça com carinho.
Jogando desleixadamente seu chapéu de mosqueteiro para um lado o Gato estica uma pata me chamando para sentar com eles. Vou um tanto timidamente, deslocado com tanta alegria inconsequente.
– Carlinha, este é o meu amigo, Strindberg.
– Ih! Então ele deve ter me odiado! Hahahaha! Não sabia que ele tinha desistido de permanecer morto entre as raízes das flores de lótus… Pera ai, então você é o Helium? Hihihihi!
Não disse nada, apenas olhei para ela meio sem graça e tentei vestir um sorriso simpático. Devo ter parecido um zumbi de filme classe B. Achei estranho uma jovem conhecer Strindberg, principalmente uma jovem que desperdiça seu tempo entre o funk, a bebida, o cigarro…
– Olha, o meu amigo não é muito de dançar e prefere falar dos confusos rumos da humanidade a passar a tarde na praia tentando seduzir uma moça como você.
Devo ter ruborizado um pouco e certamente tive vontade de jogar o Gato numa bacia de água quente! A moça colocou os cotovelos na mesa repousando o queixo nos dedos longos e sorriu.
– Deixa só eu descansar um pouco que duvido que ele não dance um pouco comigo! Não dá para salvar o mundo sem preservar as energias e nada gasta mais energia do que ficar assim com esse rosto fechado e o coração pesado, né? Eu já salvei o mundo algumas vezes! Sei bem do que estou falando!
Olho para o Gato já desconfiando onde ele me meteu!
– Aha! Eu já saquei seu jogo Gato! Essa moça provavelmente nem é humana, deve ser mais outro ser imaginário que você tentará me convencer que é um deus ou coisa mais poderosa!
– Não, ela é a Carlinha mesmo… Tem 22 anos, é jornalista, mas não pretende ir além do cotidiano atrás das mesas da redação onde faz um dinheirinho que lhe basta para curtir a vida quando sai do trabalho.
A moça está me olhando e sorrindo… Pelo sorriso seria fácil achar que ela não tem mais do que 14 anos… depois de uma certa idade a gente perde aquela simplicidade e atrás de cada sorriso tem um traço de tristeza ou de preocupação.
Tudo é estranho quando o Gato de Botas está por perto… Se a guria é normal como é que vê o fruto da minha mente esquizofrênica?
– Meu amigo – O Gato interrompe os meus pensamentos como se os lesse – primeiro que eu já disse que não sou imaginário, que coisa! Segundo que todo humano livre pode me ver! Vou ver se essa taberna tem um vinho decente, fica ai com a Carlinha.
E eu fico… Olho para ela com um misto de inveja por não viver com a mesma despreocupação e de desprezo por ela não se sentir responsável pelo mundo como todos deveriam se sentir. Ela me olha de volta séria, mas os olhos ainda brilham como se rissem da minha infantilidade.
– Sabe… O mundo ainda estará lá depois do tsunami… Um monte de gente pode morrer, se a gente estiver por perto podemos tentar ajudar alguns e até morrer no final, mas enquanto o tsunami não vem o sol se levanta todos os dias e tem muitas outras coisas a fazer… Não vale a pena salvar um mundo triste, né? Vem, você vai adorar “Vira de ladinho”!!!
Me segurando firme pela mão ela me puxa e já vai cantando “… vira de ladinho, levanta a perninha, descendo e subindo, fico tarado…”