Imagem: Volkan Olmez

Ainda é dos telefones antigos que fazem click e um sinal grave contínuo quando é desligado.

É um natal desagradável chegando ao fim. Invadido por lembranças ruins.

Eles não existem mais, esses telefones… Está apenas na memória da Débora enquanto decide se responde, apaga ou guarda o email que recebeu do tio. Aquele mesmo que abusava dela no escuro das noites de natal quando ela tinha menos de 10 anos, mas já entendia que era vista como um objeto de prazer.

Quantas vezes ela desligou o telefone na cara dos pais que se recusavam a acreditar que era assediada. Foi esse o ruído que ficou marcado em sua memória: click… tuuuuu…

Não foram as vozes dos pais, as boas memórias do carinho deles pois o mal que lhe fizeram superou em muito os momentos de carinho.

Ela invejava as amigas cujo problema era que pediam carrinhos ou videogames de natal, mas ganhavam bonecas porque tinham que ganhar apenas “coisas de menina”.

Faz 20 anos que Débora deixou a casa dos pais e se aventurou pelo mundo. Diziam que era destemida e independente por deixar a proteção familiar aos 18 anos e se lançar no mundo.

Não era coragem, era desespero, mas ela contava apenas aos amigos mais próximos que, aliás, geralmente tinham histórias parecidas. Quase todas as mulheres e alguns homens.

Quando ela tinha vinte e poucos anos vieram as redes sociais online e as entranhas das famílias foram sendo expostas, o véu que antes só se descortinava em obras de literatura e dos cinemas mais polêmicos se desfez à luz das confissões online, dos grupos de afinidade onde as pessoas achavam nos amigos novas formas de família.

Débora aprendeu a gostar de ficar sozinha, passava longas horas na rua lendo um livro ou observando o fluxo da vida. Foi numa tarde assim que ela percebeu que sua família não tinha sido horrível, era apenas “ruinzinha” como a maioria das outras que ela encontrava nas conversas com amigos e amigas. Os abusos com ela, ao menos, nunca foram às vias de fato (que ela se lembrasse). Era uma forma de diminuir o peso da agressão que sofria sistematicamente.

Já se passou uma eternidade sem que ela visse a família mais de quatro vezes ao ano, nunca no natal, mas esse ano foi diferente: chegou o email do tio e ela se sentiu ameaçada mais uma vez.

“Acho um absurdo você se expor assim, expor sua família!”

Seu tio, que te ama

Em seu aniversário de 30 anos ela decidiu fazer um vlog refletindo sobre a vida pois gostaria, quando era criança, de ter visto o vlog de uma mulher mais velha mostrando que não estava sozinha, que tantas outras famílias eram tortas como a dela.

Num dos vídeos ela finalmente decidiu comentar que, como tantas outras crianças mulheres ela também era objetificada por parentes, até na noite de natal. Que ninguém na família acreditava, que geralmente era assim: não acreditam nas crianças…

Era sobre isso o email do tio… Sem assumir sua culpa roubava-lhe o direito de compartilhar a própria história.

Assim são os perversos: ferem suas vítimas também com a supressão do direito a ter uma voz.

Débora agora olhava para a noite de natal que se encaminhava para o fim e para o celular onde o email aguardava atirando navalhas contra seu peito.

Dor física. Ela sentia dor física ferindo seu coração. Uma mulher ainda jovem, mas independente, admirada, bem sucedida em tudo que realmente importava ser bem sucedida (a nova família que criou em seu casamento e amigos), mas dilacerada pelas ameaças do seu antigo assediador.

“Por quê?” ─ Ela pensava! Por que motivo ela ainda se desestabilizava 20 anos depois de deixar no passado sua família de sangue para buscar uma outra vida? Não é justo, não é maduro.

A vontade é responder o email com cópia para toda a família, fazer um novo vídeo destruindo de uma vez por toda o véu hipócrita da beleza familiar, mas Débora aprendeu a jamais agir sob efeito de emoções, principalmente quando eram essas emoções que a faziam sentir como se fosse um fracasso. Sensação, aliás, que ela não sabia bem explicar.

Leu mais uma vez o email, percebendo que se sentia estuprada pela tentativa de lhe tirarem o direito de falar e sempre fora assim, ela sempre restringiu seu próprio direito de falar para não magoar quem a magoou. Fazia isso por respeito, por amor, mas também por medo pois a culpa do assédio, de acordo com o assediador, sempre é do assediado ou não passa de loucura da pessoa que se diz vítima de assédio.

“É absurdo que eu me sinta assim, acuada, encurralada… Absurdo”

Uma lágrima correu fria por sua face, o email foi arquivado sem resposta, ela não faria esse jogo.

Tudo que ela quer é esquecer a família que a abandonou e abraçar a que sempre está lá para apoiar e ser apoiada, como aquele amigo que deixou uma mensagem no WhatsApp falando como Débora foi o alicerce da vida dele!