Esse é o meu post de ano novo, mas que começa nos há 46 anos, quando eu tinha 10 anos e ouvia Nuvem Passageira (de Hermes de Aquino) entre os pilotis do prédio onde morava em Brasília.

“Sou um castelo de areia na beira do mar”

Foi nessa época, entre outros pilotis, os do comércio entre quadras, que me deparei com a morte pela primeira vez e ela veio solitária trazida apenas pela letra da música. Ninguém sequer passava mal, mas ela veio ao meu ouvido e disse que um dia eu deixarei de existir, simples assim. Lembro bem do coração batendo oco no peito pela ansiedade porque eu gostava muito (ainda gosto) de estar aqui para apreciar a existência.

Mas o que aconteceu há vinte anos foi outra coisa. Essa introdução é necessária só porque a efemeridade da vida se impôs tanto durante as perdas que o governo causou na pandemia, quanto na partida precoce de uma amiga.

Há 20 anos uma amiga, praticamente uma adolescente ainda, me olhou nos olhos quando eu disse que temia votar no Lula porque a mídia e grande parte do poder econômico fariam de tudo para difamá-lo e ela disse, talvez nessas exatas palavras, “É agora ou nunca!”

E foi. E Lula foi capaz não só de resistir às campanhas de difamação (que chegaram a me influenciar nesse blog mesmo), como conseguiu terminar dois mandatos com enorme popularidade e eleger sua sucessora. Não só isso, mas conseguiu impor avanços importantes para o desenvolvimento do Brasil.

E o que tem isso a ver com o Ano Novo?

Bem, é Ano Novo quando um ciclo se encerra e começa outro e 2023 começa simbolicamente como começou 2003.

Nos últimos 6 anos vimos o país perder. Basicamente o país perdeu de quase tudo: da cultura, educação, ciência e industrialização a equilíbrio, desenvolvimento social, estrutura social e familiar.

Vimos uma estratégia de aterrorização da sociedade, que já estava em curso ainda no século passado, crescer exponencialmente se aproveitando das câmaras de eco da Internet.

Aqui acho que vale invocar a dancinha da Wandinha na série da Netflix como exemplo. Se no final do século passado nós vimos o sorriso emblemático da Wandinha da Cristina Ricci uma vez por semana, hoje milhões de pessoas estão mergulhadas na dancinha da Wandinha da Jenna Ortega.

Na civilização hiperconectada o dia não tem 24h, tem bilhões de horas.

Esse post devia estar no Meme de Carbono, meu blog sobre cibercultura… Vou mudar logo o rumo dele!

Nós somos os protagonistas das nossas próprias histórias, mas apenas castelos de areia na história da humanidade. Dentro do nosso espaço de vida e das pessoas que nos acompanham na jornada pela existência somos eternas e essa é a melhor imortalidade que podemos ter. O peso de ter que ser relevante e lembrada pela humanidade é uma perversidade que nenhuma pessoa merece e, desconfio, é desagradável para quase todas que acabam se vendo com esse fardo.

Pois cá estamos, acordando de um pesadelo de seis anos deslizando por uma ribanceira escura que parecia não ter fim e durante os quais simplesmente não podíamos nos dar ao luxo de nos conformar em ser apenas castelos de areia na beira do mar, nuvens passageiras ou cristais bonitos que se quebram ao cair. Nós precisávamos acreditar nossas vozes poderiam se amplificar como se o movimento das barbatanas de um pequeno peixe pudesse mudar o sentido das corrente marinhas. E… quer saber? Não importa que estivéssemos nos iludindo ou que tenha sido terrível carregar esse peso por tanto tempo pois esse era o desafio que se impunha a nós assim como a demanda do Um Anel se impôs a Frodo e ele não se intimidou.

Agora retornamos a um ciclo mais humano e progressista. Sem ilusão de que Lula é algum tipo de mito ou santo, mas que ao menos dá sinais de querer pagar os custos para ser mais do que um castelo de areia à beira do mar.

Até aqui nosso enquadramento era “temos que sobreviver”. Em alguns casos bem literalmente como, que denunciava nesse blog em 2005 o fascismo dos gurus dos que tomavam o poder em 2016. Como sou mesmo uma nuvem passageira ninguém me notou, mas muita gente foi perseguida, perdeu emprego, foi constrangida a se submeter a um caos institucional.

Agora já podemos iniciar 2023 nos concentrando no que podemos mudar nas nossas vizinhanças, em aprender sobre possíveis caminhos coletivos e individuais para o futuro porque, na verdade, mesmo o castelo de areia mais efêmero deixa memórias e ecos que podem causar mudanças lá para frente e toda mudança é boa, isso eu aprendi com Lao Tse. O caos dos últimos seis anos, por exemplo, está nos fazendo aprender muito sobre as nossas fragilidades.

Ia parar no parágrafo acima e fazer só algum fechamento, mas me interromperam ao telefone – já é estranho as pessoas ainda ligarem pelo telefone – e fiquei sabendo que um parente muito próximo ainda acha que a posse do Lula foi um teatro midiático e que os militares continuam governando o Brasil e outro parente igualmente próximo acha que o governo Lula afundará o Brasil. O segundo acha que o primeiro vive em uma realidade paralela quando ambos estão desconectados da realidade.

Percebo então que não tem como terminar esse post reconhecendo que temos uma longa jornada pela frente para entender os mecanismos que atiraram perto de 36% dos brasileiros em um sério e duradouro descolamento da realidade.

Pelo menos temos um governo que, se quiser construir qualquer continuidade, terá que abordar seriamente esse problema, e que venham as pessoas de humanas pois só elas tem as ferramentas para cumprir essa jornada!