Eu sei, eu sei, a pandemia terá um fim, no entanto, aqui no Brasil é fácil não conseguir ver isso.
Antes de continuar, se a pandemia de covid-19 te causa ansiedade e você não aguenta mais talvez o meu post anti-ansiedade sobre a Covid-19 ajude. Agora pode continuar, mas pode ser meio pesado.
No dia 11 de março completamos um ano de lockdown familiar e por lockdown quero dizer que não vamos nem a padaria ou mercado e quem mais saiu, eu, quase pode contar os dias nos dedos das mãos.
Apesar disso quase não escrevi sobre a pandemia. Acho que não quero materializá-la, eternizá-la em palavras e bits, mas é necessário, né? [emoji com sorriso triste tentando achar forças]
Agora que vou escrever mais uma vez uma vez terei que admitir que no Brasil a todo momento temos medo real e racional da pandemia se tornar eterna e da covid-19 nem ser a pior pandemia, mas sim as hordas de pessoas recrutadas pelos cavaleiros do apocalipse que deixam rastros de morte, praga, violência e fome… Para ficar claro, políticos como Bolsonaro e as empresas e organizações religiosas que os compram, nunca esqueça que os políticos são apenas lacaios e os cavaleiros são espectros que assombram nossa visão periférica, mas raramente se apresentam em toda sua putrefação, vestes ensanguentadas de morte e violência ou em miasmas de fome.
Enquanto vemos desamparados a vacinação começando, mas sem isolamento social, o que pode favorecer o surgimento de novas cepas como a P1, mas agora capazes de escapar das vacinas, temos que lidar com numerosas crônicas diárias de dor e indignação, mas felizmente também há recantos à meia luz onde encontramos o alívio e o calor da amizade e do cuidado.
Será que ficará longo demais um post reunindo várias dessas crônicas? E ainda tenho que cuidar de não misturar com os sonhos que tenho tido e escolher só casos reais.
No WhatsApp pipoca meu pai… Ivermectina, ivermectina, só vacina da Pfizer, olha isso, e isso, sempre o mesmo isso, sempre a mesma corrente de falácias de um agarrar desesperado de uma promessa de não sentir medo da covid-19.
Quando foi que passamos a ter mais medo do medo que da ameaça real? Hummm… Desde sempre, né? Me lembro de outros mamíferos, os mais engraçados são os esquilos, que fingem de mortos diante do predador. Os instintos às vezes são uma droga.
Já tentou se colocar no lugar de 30 anos a mais de vida perplexa além do que você já viveu? Já pensou que as pessoas com mais de 30 ou 40 anos cresceram num mundo que era… previsível? Elas formavam suas visões do mundo até os 18, 20 anos e podiam seguir com elas, arranjavam uma profissão das quais se aposentariam e passariam alguns anos numa cama vendo TV e jogando damas com outros aposentados na praça nos finais de dia…
Eu tento. Quase entendo a perplexidade do velho pai, mas não consigo entender de fato a dificuldade de perceber que os tempos agora são reconhecidamente fluidos, eles sempre foram fluidos, vamos falar a verdade, né? As pessoas é que criavam bolhas de estagnação ilusória enquanto a humanidade ia à Lua, alterava perigosamente o clima, rasgava cruelmente o tecido social…
Mas, pera lá! Tô falando das crônicas pandêmicas e não das dos anos dourados da alienação.
Estou falando do grupo de colegas que viram de perto a inépcia das nossas forças armadas, que aliás eram rebeldes contra a hipocrisia hierárquica e agora também pipocam no WhatsApp com shows legendados de Andre Rieu em São Paulo em 2012 com umas legendas fascistas convocando intervenção militar depois de 2 anos de um governo mais militar que o da ditadura e claramente incompetente, aliás pior que incompetente, flagrantemente a serviço da fome e da praga ignorando o Brasil e se empenhando na transferência do sangue dos brasileiros para corporações que se lambuzam em nosso sangue e dor convertidos em dólares e euros.
As crônicas dos parentes e amigos que, talvez incapacitados pelo medo e pelo ódio espalhado pelo WhatsApp (mas seria – e é – também por outras redes online e offline), servem à morte, à praga, à violência (a forma moderna da guerra: homofobia, misoginia, elitismo cultural, racismo…) e à fome são as que mais revoltam, mas não são as que mais doem.
No começo da pandemia, quando escalamos rapidamente o monte das mortes desnecessárias contando dezenas de milhares de mortos e logo atravessando a centena de milhares chegava a nós toda semana a notícia de alguém próximo que tinha morrido. Avós, pais, mães, tios e irmãos mais velhos de amigos que adoeciam às dezenas e raramente saiam sem sequelas. Já nos primeiros seis meses choramos também a morte de jovens.
Agora as crônicas chegam rápido demais para escrever sobre elas… Se antes eram toda semana agora é difícil passarem três dias sem que alguém perca outro alguém próximo e sei que nós mesmos, ainda que tenhamos sobrevivido a ela em dezembro, podemos pegar de novo e não ter tanta sorte agora. Tentamos nos preparar para o que ainda não aconteceu: a perda de alguém muito próximo. Tem grande possibilidade de ser um dos meus pais que se enfraquecem com medicamentos inúteis e se recusam a tomar essa ou aquela vacina… Não acho que terei pena ou mesmo que sofrerei… Eu sei, é rude e cruel dizer isso, mas não posso mentir, não em uma era com tantas mentiras, me sinto mais suscetível a sofrer por quem se apegava à razão e ainda assim foi alcançado pela pandemia.
Felizmente tem algumas ilhas de sanidade em meio a tudo isso, um grupo no Telegram ali, umas trocas de DM no Instagram, ombros virtuais muito reais, tanto recebidos quanto oferecidos.
E teve aquele dia que a amiga fazia aniversário, um único dia há poucos dias pela primeira vez:
– Vamos aí te visitar pelo seu aniversário!
Sabemos o quanto ela se cuida e ela também sabe de nós, mas, mais importante, temos confiança e confiança em tempos de pandemia é uma frágil e preciosa joia. Tem crônicas também de amigos que não eram confiáveis e foram encontrar com outros sabendo que podiam estar contagiosos… Mas se existe um privilégio é ter amigos com quem podemos trocar verdades e felizmente temos alguns.
Combinamos com outros dois casais do mesmo grupo e chegamos juntos de surpresa e o sorriso de alívio e de conforto da amiga vale uma crônica própria, mas por ora ficará aqui apenas a cena que ainda ecoa vívida na minha mente quando fecho os olhos e lembro… Os sete de máscara todo tempo na sala ventilada e o calor humano apesar de mantermos inconscientemente uma certa distância. Lembro da sala à meia luz, mas estava bem iluminada, é a sensação de estar em um espaço à parte do resto do mundo que envolve a cena em brumas. Foi um risco? Foi… Um risco calculado antes da P1 se espalhar definitivamente pelo Rio e acabarmos por ter que nos proteger ainda mais que antes. Um risco que me faz pensar no risco que vale a pena para quem está nos últimos anos de vida e talvez tenha que passá-los na solidão da própria casa, muitas vezes pequenas e em um tempo em que somos pequenos por dentro também… Se eu passar cinco anos isolado ainda terei décadas de abraços, mas não quem tem mais de 80 anos…
Essas devem ser as crônicas mais duras, a dos que esperam o fim dos dias envolvidos pela ameaça da pandemia, mesmo depois de receber a vacina, afinal continuam não podendo ver os mais jovens, filhos e netos, que sabem os cavaleiros do apocalipse quando serão vacinados. Felizmente poucos sabem do risco da vacinação sem isolamento criar cepas capazes de escapar das vacinas. Ou infelizmente pois temos também as crônicas de quem já se vacinou e passa a fluir pelas ruas arrastando o manto da praga atrás de si.
Pelo jeito a pandemia tem mais crônicas do que posso enumerar e espero que possamos transportá-las para textos, podcasts, vídeos e músicas não para chorar, mas para aprender, para lembrar, para homenagear e, se for para chorar que seja de saudades e que sejam lágrimas de amor.
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