Fiquei em dúvida se devia ou não escrever sobre isso.

Pode ser que apenas um punhado de gente esteja mesmo empenhada nesse discurso contra a família (já explico) e eles acabem encontrando outros pequenos grupos porque nós estamos ecoando suas palavras.

No entanto eu vejo gente próxima a mim sendo parcialmente confundida pelo discurso de ódio à família, à democracia, ao próximo e a Deus.

Agora vou explicar! No final do post vou colocar uns links com enfoque jornalístico, ok?

Ódio contra a família

Quando a gente escolhe uma família “certa” é claro que estamos determinando que todas as outras famílias são erradas.

Ser a favor da família é garantir que ela possa existir em sua diversidade de formas e fins.

Tive uma amiga que, por incrível que pareça, não conseguia manter uma família com os próprios pais e, ainda com uns 13 anos, se “divorciou” legalmente deles e foi construir sua família com os avós.

Minha família tem a minha esposa, vários amigos e nenhum filho, sim, a gente adota os amigos como se fossem irmãos.

Conheço mais de uma família feliz com três ou quatro membros romanticamente envolvidos.

Tem família de tios que cuidam dos filhos dos irmãos que não podem cuidar deles.

Há todo tipo de família, mas o comum a todas as famílias “certas” é que existem pontes de respeito e carinho entre as pessoas que fazem parte delas.

Ódio à democracia

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Acho que é porque a gente tem essa enorme facilidade em pensar que as coisas que a gente imagina são reais… A gente vê uma luz nova no céu e, logo em seguida, tem certeza absoluta que é uma nave espacial de seres reptilóides vindos de outra estrela com o objetivo de substituir nossos líderes políticos e culturais para transformar a Terra em um resort de férias onde diversas espécies alienígenas virão para caçar e devorar alguns humanos e escravizar outros.

Talvez por isso algumas pessoas achem que os militares seriam seres incorruptíveis, que eles seriam capazes de identificar todos os esquemas de corrupção, prender (ou matar pois quem tem ódio quer sangue) os corruptos e oferecer ao povo apenas pessoas também incorruptíveis em quem votássemos.

Isso não te parece completamente absurdo? Não parece o tipo de ideia que destruiria o roteiro do pior filme B que você já viu? Pois é, mas conheço gente que engole isso…

O medo… Ele é um veneno para nossa capacidade de pensar racionalmente. Quase sempre há medo onde há ódio, mas o ódio sozinho também já é capaz de acabar com a razão.

Na minha opinião nem é por mal que a maioria das pessoas se deixa envolver nessas ideias, viu? Acho que funciona geralmente assim:

A pessoa não aguenta mais ter que pensar em como separar o joio do trigo no cenário político e empresarial (pense nas indústrias de comida e remédios). A pessoa foi às ruas protestar junto com outros milhões de pessoas ou ficou em casa torcendo e viu que tudo acaba em violência do estado contra os cidadãos indignados.

Cara, a gente está cansado, desiludido, com medo (principalmente se você é das vastas periferias massacradas por governos de quase todos os partidos) e com raiva. Podemos chamar de indignação como o Castells em seu Redes de Indignação e Esperança (recomendo muito a leitura), mas quando a esperança cai a indignação vira ódio fácil, fácil.

Aí acontece: as pessoas não querem passar pelo sofrimento de ter que escolher um candidato, se decepcionar com ele, escolher outro candidato e se indignar com ele. O que vem a seguir é lógico.

“Não quero ter nem que ir na urna dizer que não quero votar”, “Alguém decida por mim quem vai governar!”, “Tragam de volta a ditadura! Meus pais nunca se incomodavam com política” (bem, ou se incomodavam em segredo sem contar para os filhos para não morrerem).

Acontece que democracia não é algo que os outros fazem, é algo que todos nós fazemos juntos, é isso que estou fazendo aqui ao expor o que penso na esperança que um punhado de pessoas desenvolva melhor o que elas mesmas pensam, mesmo que seja o oposto do que eu defendo. Desde que elas discordem com razão e não pela força da opressão.

A democracia é como criar uma receita de bolo. Aos poucos, pela experiência, a gente vai descobrindo a proporção de massa, açúcar, ovos, fermento, temperatura, vigilância… É principalmente vigilância pois é quando a gente não está olhando que o bolo sola…

Quem está buscando formas de não ter que pensar em política provavelmente descobrirá que está agindo contra a democracia e dando ouvidos a quem odeia que todos possam ser ouvidos e que a sociedade seja justa.

Humm… Ia falar aqui do papo “não dá para todo mundo ter uma Ferrari, as diferenças sociais tem que existir”, mas acho que já cai no próximo ódio.

Ódio aos outros

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“O povão é alienado, pobre é mesquinho, preguiçoso, é gentinha, não paga impostos (eu sei que pobre paga mais imposto que rico, ok?), os homens de bem precisam conduzir a sociedade”.

Juntei tudo numa frase só, ok? Tem formas mais discretas de dizer que a gente acha que uns humanos são mais humanos que outros, que pobre deve merecer ser pobre.

Sugiro a leitura do texto sobre fascismo no livro Cinco Escritos Morais do Umberto Eco.

Esse é um tema difícil que acho melhor desenvolver melhor em outros posts ou até no Meme de Carbono pois mexe com algumas emoções muito fortes, mas tenho que dizer algo agora, né?

Nós humanos surgimos tem 200 300 mil anos. É o mais longe que a gente consegue achar Homo Sapiens.

Até uns uns 10 mil anos atrás nós andávamos em pequenas tribos caçando e coletando comida. De lá para cá a gente começou a plantar, formamos vilas, cidades e nos apinhamos no mundo inteiro.

Nós sabemos lidar com grupos de 400 pessoas muito bem, mas vivemos aglutinados entre milhões de pessoas. Podemos pegar o mesmo ônibus todo dia e 90% das pessoas que vamos ver serão completos estranhos para nós.

Mesmo os rostos que vemos repetidos são incógnitas. Quem são eles? O que querem? O que pensam?

Some a isso o fato da gente viver em ambientes quase completamente virtuais (para mim cidades são mundos virtuais feitos de tijolos em vez de bits) para os quais não evoluímos.

Em algum nível quase todos nós nos sentimos perdidos e acuados no mundo em que vivemos.

Nesse quadro é muito fácil ter medo dos outros. É até uma necessidade de sobrevivência pois há mesmo outros que são perigosos para nós.

Não são perigosos porque vão vestir uma roupa feia ou beijar alguém que a gente nunca beijaria, isso não é perigo, é diversidade…. Só que, como nos falta segurança em nosso estilo de vida (será que estou vivendo “certo”? Seguindo a moral “certa”?) a gente não se sente ameaçado só por quem pode nos assaltar, a gente se sente ameaçado também por quem tem cultura, gênero ou hábitos diferentes dos nossos.

Ameaça, medo, ódio…

Quando vemos as pessoas condenarem outras formas de família ou outras culturas estamos vendo também o ódio às pessoas.

Quando a gente faz pouco da música que os outros gostam, das causas que os outros defendem, do jeito que fazem suas festas de 15 anos, eu lamento, mas provavelmente estamos odiando as pessoas porque não temos segurança em nosso próprio jeito de ver o mundo.

Daí a gente quer que todo mundo ame o artista que a gente ama e diz que os outros são ruins. Sempre dá para inventar uma desculpa.

Ódio a Deus

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Esse é o mais difícil de comentar porque, desconfio, Deus é o instrumento supremo para firmar o chão sob os pés da gente quando na verdade ele é uma areia movediça. Quando tudo mais falha a gente levanta o nariz e diz que Deus está do nosso lado! Quando eu morrer vou viver para sempre no Club Med do céu e as pessoas que não combinam a cor do sapato com a cor do cinto vão para o inferno eternamente.

Acontece que isso aí em cima não tem nada a ver com Deus. Se existe um ou mais deuses eles dificilmente existem para castigar quem não vive de acordo com o nosso jeito de ver o mundo.

Dá até para demonstrar isso logicamente em uma frase: A moral e a ética mudaram incontáveis vezes nos últimos séculos.

Será que preciso explicar melhor? Tá, assim então: duvido que o mais puritano de hoje não seria condenado pela inquisição há somente 400 anos. Se tem um Deus é o mesmo da época. Ele não estava a favor da Inquisição e ele certamente não está a favor somente da família composta por homem e mulher da mesma etnia com com 2,5 filhos.

Além disso vale o mesmo que eu disse sobre a diversidade de famílias: quando escolhemos um Deus nós acabamos condenando os outros.

Vou desdobrar isso, ok?

Será que alguma religião humana viu plenamente Deus? Será que alguma religião humana não percebeu pelo menos uma parcela de Deus?

Se existe um Deus (sim, eu sou um ateu em relação aos deuses humanos e agnóstico em relação aos deuses “de verdade”) é absurdo achar que alguma religião foi capaz de vê-lo plenamente ou que alguma religião fracassou completamente ao tentar encontrá-lo.

A Bruxaria (Wicca) e sua ligação aos ritmos da natureza nos coloca em contato com a criação, o Taoismo busca a essência da mente indo muito além do que Platão sonhou, o Budismo nos ajuda a entender as dificuldades como degraus para sublimar nossos interesses terrenos, as judaico-cristãs nos convidam a amar uns aos outros e a sermos humildes.

A nossa diversidade cultural e religiosa provavelmente é essencial para que nos tornemos uma civilização cada vez melhor (e sim, nós estamos nos tornando uma civilização melhor).

Essa marcha da família com Deus não parece ser com as várias formas de ver Deus que nós humanos construímos. A clara impressão é que Deus vai ali na frente como um servo forte e bem armado dizendo “aceite a família dos meus mestres ou te devorarei”.

Se transformar Deus em um servo ou num miliciano não é odiar a Deus…

Conclusão

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Pode ser que os participantes da Marcha da Família com Deus sejam um punhado de pessoas, digamos… excêntricas e não passem de uns poucos milhares deslocados nesse século, mas todos temos medo e medo nos faz pensar coisas estranhas.

Por isso achei necessário escrever esse post, somar minha pequena voz a outras tantas. Quem sabe a gente acaba vendo, em reação ao punhado de pessoas acima, marchas pela diversidade religiosa, pela diversidade de formas de amar e formar famílias, pelo amor fraterno, pelo amor em geral?

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Imagens

Cr?dito: Adriano Kitani
Crédito: Adriano Kitani

Atualizando em 23/03/2014

Ontem fui lá ver com meus próprios olhos a passeata no Rio.

Vi algo em torno de 200 pessoas. Muitos homens, poucas mulheres, poucos casais, poucos jovens, talvez 10% de jovens. Não consegui identificar nenhuma família no pequeno grupo.

Creio que ficam as perguntas:

  • Por que não conseguiram juntar mais gente em uma cidade com 12 milhões de habitantes?
  • Por que a mídia fez tanto barulho por causa de um grupo que não conseguiu juntar mil pessoas no país inteiro?
  • Se o apoio é praticamente zero por que há políticos eleitos defendendo essas ideias?