— Como assim eu sou transhumana??
Marcos olha para o Jorge entre surpreso e assustado.
Não porque Jorge se referiu a ele no gênero feminino pois essa já é um hábito antigo do amigo para quem todo mundo é pessoa, mas apenas metade são do gênero masculino.
Marcos está assustado porque entende que transhumanismo significa interferir no funcionamento natural do nosso corpo e ele não faria nem tatuagem e tem pavor de alimentos transgênicos. E está curioso para ouvir que argumentos o amigo tem.
— Vamos lá, Marcos… — E Jorge olha para ele com um sorriso divertido e sarcástico — Como você nasceu? Como é a sua alimentação? Como a gente combinou de se encontrar aqui hoje? Você toma café?
— Bem… Nasci em Brasília, foi uma cesariana, não sei se você sabia. Eu como como todo mundo, uai, refrigerante, pizza, macarrão, um chope de vez em quando… A gente marcou o encontro pelo Telegram, só de birra com os vazamentos e… que mais? Ah! Sim! Tomo café, claro!
Marcos entendeu a armadilha. Enquanto respondia ia percebendo que faz muito tempo que a humanidade é transgênica. Lembrou de ter lido em De Primatas a Astronautas que a descoberta da agricultura não foi nem de perto boa para nós e que foi um tipo de imposição cultural que tornou nossas vidas individuais mais difíceis, mas aumentou tanto a possibilidade de sobrevivência da nossa coletividade quanto da nossa cultura.
Então o próprio Marcos continuou antes que Jorge esfregasse os argumentos no nariz dele.
— Putz… A cesariana nem seria necessária no meu caso, mas era mania na época, era mais rápido e diminuía riscos para a criança, diziam. O café é um estimulante que muda como nosso cérebro funciona e aí ferrou! Refrigerante além de cafeína tem açúcar, chope muda nossa percepção e nem estamos falando no uso de outras drogas! Que mais, mesmo? Ah! O Telegram, né? Ainda outro dia eu estava no celular lendo uma notícia e me assustei achando que não sabia onde estava o celular… Esse treco já tá chipado na gente, né? Só falta colocar debaixo da pele e se já viemos até aqui vamos até o fim…
— Exatamente, Marco! Mas o problema mesmo está na gente nem se tocar que somos transhumanas e vamos seguindo desgovernadas entre a torrente de informação que não sabemos como filtrar (e dão nessas eleições bizarras que temos visto e parecem tiradas do filme Idiocracia), alimentos bunda que nos estimulam muito mais do que a gente precisa… Aliás estimulam demais de um lado e desestimulam de outro nos transformando em desnutridos superalimentados.
Na mesa ao lado as pessoas tinham se calado. Dois casais mais velhos, beirando lá os 50 anos, esticavam os ouvidos querendo participar da conversa ou talvez entender o que estava acontecendo ali.
Quando a gente chega a um certo ponto da vida, que não está necessariamente ligado à idade, a última coisa que nós queremos é admitir que o mundo é um processo em desenvolvimento e que tudo pode mudar de um momento para o outro.
Só que tem essas mudanças ainda mais perturbadoras porque já aconteceram há séculos, há milênios, que sempre estiveram lá só que a gente não via porque não lhes tinha dado um nome ainda. Como o bulling.
Volta e meia escuto alguém dizer que na sua época de colégio não tinha isso de bulling, não tinha isso de assédio contra a mulher etecétera e tal.
Então começamos a pensar em como era a vida há 40 anos e vamos vendo que tudo isso e muito mais já estava lá! Que sempre as pessoas tiveram gênero fluido, sempre tiveram características que não se enquadravam em seus estereótipos, por exemplo, sempre as meninas gostavam de coisas que eram de menino e o contrário também, só que iam deixando para lá porque todo mundo sabia que aquilo estava “errado”.
Agora são Marcos e Jorge que estão fingindo conversar enquanto na verdade estão tentando espionar o papo da mesa de “idosos” que segue justamente para esse lado da toma de consciência de que eles passaram 30 ou 40 anos cegos para um monte de realidades.
É fácil estar cego… Hoje mesmo vi um vídeo da BBC sobre uma extensa pesquisa usando vídeos de câmeras de segurança para investigar o princípio do “bystander” que afirma que as pessoas são egoístas e não ajudam desconhecidos. Eu mesmo achava que era assim, mas não é o fato revelado pela pesquisa! Em três culturas totalmente diferentes os resultados foram muito parecidos: em 90% das vezes estranhos foram ajudar estranhos!
— Jorge… E como ficamos então? A gente tem que virar robô? Monstros cibernéticos com caudas? Nos extinguir e ceder espaço para uma outra espécie?
— Sei lá eu, pessoa? Eu só sei que somos transhumanas e, se quisermos fazer o melhor que podemos por nós mesmas e pelo que está à nossa volta, é melhor pensarmos muito bem nas limitações da nossa mente e corpo e como temos mexido com elas.