Aviso: este post é sobre a covid-19. Se ela te causa ansiedade recomendo parar aqui e visitar a página antiansiedade sobre a covid-19 que fiz em outro blog meu.

Já são quase 16 dias contemplando a enorme montanha que terei que atravessar junto com todas as outras pessoas no planeta. Pode ser a primeira vez na vida de todos nós em que temos um desafio em comum, que estamos diante do mesmo problema para o qual só existe uma solução: afastamento físico.

Muito embora não possamos caminhar lado a lado, podemos trilhar o mesmo caminho, em pequenos grupos que calharam de estar juntos quando a montanha se ergueu diante de nós sem aviso, sem ao menos o som de um sussurro.

Em Wuhan ela chegou com estrondo, mas para o resto do mundo foi sua sombra que anunciou sua chegada e quase todos nós a subestimamos. Achamos que era outra sombra como muitas outras que passam como a gripe da estação, ou uma zika inesperada, mas fugaz para os que tiveram a sorte de não terem as pequenas vidas em seus ventres atingidas.

Acontece que a montanha desta vez era muito maior! Ela veio nos empurrando aos milhares para hospitais onde caberiam apenas centenas.

Alguns de nós demoramos a acordar quando a sombra se estendeu sobre a Terra e agora choram as fileiras de caminhões que conduzem os que a sombra já levou. Para eles o descanso é solitário e o caminho não foi suave. Muitos outros atravessam dias e semanas em paralelo alimentando a esperança de deixar aquele lugar e encontrar o outro lado da montanha.

No entanto sequer conseguimos ver os picos nevados que nos esperam antes da travessia se completar. Os números crescem, as paredes íngremes se multiplicam ainda que estejamos nos recolhendo aos nossos abrigos onde a sombra não chega, onde ela não pode chegar, é o que rogamos.

Claro que a ameaça e a solução é a mesma para todos, mas sempre há os que, seja por arrogância, por ganância ou por ignorância, abraçam a sobra gelada que traz os ventos cortantes da montanha. Eles estendem as mãos suadas para os desesperados dizendo “Venham! Venham! Tudo pode ser como antes! Não precisamos enfrentar o problema! Ele passará sozinho!”.

Sozinho ele não passará!

Uma luz agradavelmente quente atravessa as sombras e as brumas! São as vozes da ciência, da razão, da persistência da humanidade que, um a um, vai calando as ganâncias e ignorâncias arrogantes! Hoje parece restar apenas uma, justamente aqui no mesmo vale onde tenho meu acampamento de quatro almas resilientes e grande parte da família com quem atravesso rios, mares, montanhas. Ela passará, nós ficaremos.

Claro, também, que muitos aceitam as mãos úmidas dos genocidas que chegam a nós montados em seus corcéis impiedosos: ganância, luxúria, preconceito.

Talvez todos saibamos que o mundo do outro lado da montanha será outro, que teremos que nos adaptar, e algumas vezes preferimos a morte à necessidade de mudar. Também pode ser que tenhamos medo de nada mudar e ser tudo igual do outro lado da montanha até que venha outra e, dessa vez, nos engolir na sombra.

O que a história nos ensina é que sempre mudamos depois de atravessar um pequeno riacho, um grande lago, um vasto mar uma incomensurável montanha. Tanto maior a mudança quanto maior a travessia.

Sim… Podemos mudar para pior, mas para isso a história que ouvimos dos nossos antepassados também tem resposta: quando mudamos sob a luz da razão, quando olhamos para a realidade com coragem, criamos grandes coisas, caminhamos para temos mais humanos, para eras de arte e filosofia. Quando nos deixamos conduzir pelo medo, pelo preconceito, pelo egoísmo caímos em períodos obscuros da nossa história.

Qual será nossa trilha dessa vez?

Não quero ser otimista. Não quero ser pessimista. Quero sentir o frio e o calor que vierem contra o meu rosto, quero a sensação da terra ou da rocha sob meus pés descalços, quero sentir as gotículas douradas do sol ou as agulhadas frias da chuva sobre minha pele despida de antecipação e de convicções, quero o sabor puro da vida correndo pela minha língua e descendo pela garganta.

Quero a realidade e darei por ela o que estiver ao meu alcance.

Então dê aqui sua mão e vamos escalar essa montanha! Vamos atravessar seus picos ainda que sejam inóspitos e vamos receber de peitos abertos o que o outro lado dela nos oferece!

Imagem (detalhe): Howard Bouchevereau on Unsplash