Aviso

Interstellar merece uma resenha sem as amarras de tentar evitar spoilers então vou contra as minhas regras e esse será um artigo com spoilers, ok? No entanto vou avisar e, antes dos spoilers, vou começar dizendo:

Porque Interstellar é fantástico?

Existe um lugar comum de que “coisas populares são ruins porque a maioria das pessoas é idiota” e nenhuma dessas duas duas coisas é verdade. Nem pop é ruim, nem as pessoas são idiotas… Aliás, todos nós somos pessoas, certo? (isso é assunto para outros posts).

Interstellar é uma prova disso.

Vou começar pelo roteiro.

Ele definitivamente não é comum. A forma como ele combina coisas que acontecem em momentos diferentes, sequências de ação e de drama é algo que você verá em poucos filmes, e não me ocorre nenhum no momento.

O efeito disso pode até ser perturbador, mas cria uma tensão constante em torno do desenvolvimento da trama e isso já deveria bastar para sairmos do cinema aplaudindo o filme.

Você pode observar isso muito bem nos 15 ou 20 minutos que antecedem o ponto de virada para a solução ou durante a contagem regressiva para o lançamento da nave (não é spoiler dizer que tem um lançamento de nave em um filme chamado Interstellar, né? Por favor!!)

O segundo ponto que eu destacaria é o uso do som. A trilha é toda instrumental e o volume alto em cenas chave nos transmite uma percepção de pequenez e de deslumbramento tão marcante que a princípio achei que a música estava presente em mais momentos do que realmente está. O contraste com o silêncio do espaço é usado de um jeito que intensifica as duas sensações.

Pensei em nem falar no aspecto científico porque, desde Gravidade, tenho visto pessoas saindo revoltadas dos cinemas confundindo o que é realista e o que é exagero característico do estilo scifi, mas o realismo é um ponto notável de Interstellar e as cenas (realistas ou não) são realmente de tirar o fôlego e deslumbrantes!

É muito bom ver a ciência de verdade ser retratada e discutida na cultura pop. Isso é uma parte importante do que torna Interstellar especial.

Os interessados em diferenciar ciência e scifi no filme podem ler A Ciência de Interestellar de Kip Thorne.

Existe, claro, uma linha de ação e uma linha dramática que torna o filme mais suave e menos cult-estranho, mas também nisso ele é notável pois as sequências de ação não quebram a linha dramática e o drama não está restrito a somente um arco da história. Temos pelo menos três linhas dramáticas importantes e algumas secundárias. Esse é o quarto ponto que merece destaque na minha opinião.

Seguem fotografia, montagem, edição, roteiro original e as atuações que, se não estão impecáveis pelo menos estão justas.

No entanto o ponto que, na minha opinião, torna esse filme mais fora de série é a mensagem que ele quer passar e o sucesso com que o faz: A humanidade surgiu na Terra, mas não está fadada a morrer nela. Está tudo muito claro no trailer:

Vivemos um claro momento de transição de eras em nossa civilização como outros já disseram antes de mim: estamos virando uma civilização científica e planetária o que quer dizer que a ciência e as tecnologias que emanam dela estão se tornando parte da humanidade, como se fôssemos todos ciborgues diante de um planeta que demonstra claramente que nós fomos feitos para a Terra, mas a Terra não foi feita para nós e, a qualquer momento, pode seguir sua história geológica passando para um estado inviável para as formas de vida atuais colocando-nos entre a extinção e deixar o planeta.

Desde os seus primeiros minutos o filme valoriza o papel da ciência, da educação científica, da igualdade entre homens e mulheres em sua capacidade de entender e transformar o mundo.

Interstellar vem dar boas vindas e ajudar a produzir uma geração de cientistas homens e mulheres que serão cada vez mais essenciais para que possamos seguir o nosso próprio caminho evolutivo, seja ao lado da Terra, seja no Cosmos onde está a nossa próxima fronteira. Não só pela aventura, mas também por necessidade.

Além de nos sugerir uma abordagem para o futuro Interstellar também nos aponta para um espírito coletivo.

É muito comum na ficção termos um super ser que nos protege paternalmente, pode ser um viajante do tempo como o Doctor ou uma raça alienígena de robôs ou mesmo um gênio humano. Em Interstellar não é assim. Os heróis são humanos e os humanos são heróis.

Quem vai gostar e quem vai odiar?

Antes de entrar nos comentários com spoiler acho que tenho que fazer mais esse serviço a quem ler esse artigo.

Preste atenção: Interstellar não é um filme para distrair, rir ou se divertir. Ele até pode ter um pouco dessas coisas, mas é um filme feito para perturbar. Para nos fazer sentir sufocados por um Universo vasto e desconhecido, mas, em vez de ter medo, nos sentirmos atraídos por ele, responsáveis pelo destino da nossa própria espécie de uma forma ou de outra.

Algumas pessoas vão adorar isso, outras vão odiar.

Além disso, é claro, existe o gosto pessoal. Quem não gostou de Gravidade ou de Europa Report muito provavelmente não vai gostar de Interstellar.

Quem vai atrás de algum tipo de documentário científico também pode se irritar (e depois ficar com vergonha ao ver que tinha se equivocado em várias coisas).

Aliás, sobre isso, para quem tiver preguiça de ler o livro do Kip Thorne (que vergonha, hein?) tem esse pequeno vídeo com o Neil deGrasse (cheio de spoilers):

Há duas cenas um pouco mais melosas e um pouco ingênuas emocionalmente falando, mas diante do contexto geral do filme duvido que alguém realmente implique com ele por causa delas, acho mais provável que outros pontos tenham incomodado e a gente acabe buscando nessas cenas uma desculpa para explicar nosso mal estar.

Diria o mesmo dos incômodos com as imprecisões científicas. Tem umas três mais bobas, mas diante do contexto geral do filme… etc.

Comentários com spoiler

Interstellar acaba tocando em tantas questões que achei tinha que falar delas mesmo sendo impossível fazer isso sem dar spoilers.

Logo no começo, quando vemos o pai ensinando a abordagem científica para a filha e contrariando a escola (que poderia ter sido tirada de 1984 de Orwel) que procura apagar o nosso passado científico. Já fui capturado aí por considerar que essas questões estão entra as mais importantes da atualidade. E ficou claro para mim que era um filme sobre a importância da ciência (entre outras coisas).

Na sequência da cena na escola vemos que a civilização abandonou a ciência regredindo de bom grado aos tempos em que só tínhamos a terra e o arado como se essa vida mais simples fosse superior.

Veja bem, a vida simples é essencial, todos nós devemos buscá-la e ver a sabedoria nas palavras de Donald, o sogro vivido por John Lithgow, entretanto não em detrimento da nossa busca de novas fronteiras a superar. No final do filme temos isso bem claro ao ver que as pessoas passam a viver uma vida simples em grandes cidades espaciais que só foram possíveis graças à grande aventura da humanidade.

Encontramos também uma NASA trabalhando escondida da opinião pública em uma inversão da situação atual em que grande parte dos governos ignora a importância da ciência. No filme o governo passa a apoiá-la por ver que é a única opção para a nossa sobrevivência.

A história teve ainda o bom senso de não se entregar à descrição do processo seletivo que escolheria quem viver e quem morrer. Afinal Interstellar é sobre o melhor que podemos ser e não sobre o pior.

Vamos encontrar nele a ignorância, o medo e o egoísmo de uma forma difusa na sociedade e em dois pontos focais: o irmão de Murphy que insiste ignorantemente em se agarrar ao trabalho da terra negando os benefícios da ciência mesmo que coloque seu filho em risco de vida e o capitão Mann, da primeira equipe de exploração que, egoisticamente, coloca toda a missão em risco.

Não podemos culpar nenhum dos dois, não podemos ter raiva de nenhum dos dois e é Matt Damon (que vive Mann) que nos faz perceber isso: “Não me julgue, nenhum homem foi testado como eu fui”.

É isso… Como podemos julgar o outro quando desconhecemos as provaçães por que ele passou? Quando não sabemos como nós mesmos agiríamos se vivêssemos o mesmo.

Podemos dizer que essa história também é uma história sobre sacrifícios pelos outros (Whovians não precisam de explicações extra).

Praticamente todos os personagens principais, desde a menina Murph (futura cientista Cooper), até seu pai, passando pelos primeiros 12 exploradores que sabiam que provavelmente jamais voltariam e o professor e professora Brand fizeram enormes sacrifícios pelos outros e pela humanidade.

É interessante notar que nenhum desses sacrifícios foi fatal (as mortes não são ligadas a eles) como se houvesse um prêmio, uma justiça cósmica, ou divina se preferir, para quem está disposto a se entregar à aventura do conhecimento e do serviço ao próximo.

Um ponto que não é realmente importante, mas que fica ecoando na minha memória, é a forma como, em uma frase, somos levados a perceber que esse planeta não foi feito para nós: 80% da atmosfera é de nitrogênio e nós sequer respiramos nitrogênio. Na verdade são 78,08%, mas você pegou a ideia, certo?

Acho que estamos em um ponto que precisamos abandonar nossa arrogância e perceber que nós podemos optar por ser seres da Terra, seres do Cosmos ou até mais do que isso, mas definitivamente nem o Cosmos, nem a Terra foram feitos para nós. Somos apenas fragmentos irrisórios em uma vasta história que sequer desconfiamos qual é… E escrevo isso me lembrando do poder dos órgãos ensurdecedores da trilha sonora…

Bem… Tem um ponto que eu acho simplório, mas entendo perfeitamente que emocione muita gente: a força e qualidade da ligação entre as famílias, principalmente pais e filhas.

O professor Brand envia sua filha para outra galáxia para que ela possa sobreviver, mas é para Murphy que ele se confessa no leito de morte deixando-nos com a impressão de que ele a adotou já que sabia que seu pai jamais voltaria. No entanto é no amor de Cooper por Murphy que o filme realmente concentra seus esforços dramáticos. Por isso Cooper viaja pelo espaço quadridimensional (o filme diz tridimensional, outro “errinho” para os chatos) pela linha do tempo da filha em seu quarto guiado pelo amor que seria, junto com a gravidade, a única coisa capaz de transcender o espaço e o tempo.

Acho isso ingênuo, mas jamais poderia dizer que é errado, pelo contrário! Nós precisamos ver o amor como muito mais do que um sentimento, precisamos vê-lo como uma promessa como vi outro dia (mais uma referência para os Whovians – amo vcs) e, muito mais ainda, como uma dimensão.

A percepção de que o amor é uma dimensão c?ómica (ainda que obviamente não seja) nos dá motivos e estímulos para transcender nosso egoísmo pois o amor sentimento é posse, o amor que existe ao lado da gravidade é doação cega a uma filha, ou à humanidade.

Finalmente, um ponto que não podemos deixar de chamar a atenção é a importância e a força dos papeis femininos.

De certa forma as mulheres são as protagonistas de Interstellar.

É Murphy que percebe desde criança que há uma mensagem vital a ser recebida. É ela que jamais desiste e encontra a solução (científica, não me cansarei de dizer) para tirar as pessoas da Terra. Ela é o “homem” que fica na Terra depois que o pai vai embora pois seu irmão tem os músculos, mas não a sabedoria para perceber o que precisa fazer para manter sua família viva. Finalmente é ela que fica sendo conhecida como salvadora da humanidade e não o pai.

Do outro lado temos a professora Brand que carrega nas costas o peso de reiniciar a humanidade sozinha em outra galáxia. Sabe discernir entre a razão e a emoção ao sugerir pelos motivos racionais que eles deviam começar pelo planeta do homem que ela amava (num diálogo meio bobo, eu sei). Ela se mostra como a cientista mais qualificada da equipe de colonização e, repetindo, ela é a segunda salvadora da humanidade pois cabe a ela iniciar a colônia sozinha já que Cooper percebe que é inútil ao lado dela fazendo seu sacrifício final ao se atirar no Gargântua, o buraco de minhoca.

Realmente é um filme para guardar…

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