Semana passada soubemos que ele foi internado. Pensamos em visitar. Estava bem debilitado e não podia. No dia seguinte a consciência dele já não habitava o corpo cansado dos últimos meses de esforço para continuar testemunhando o tempo e deixando suas trilhas de memórias que somam à história da humanidade.
Na sexta fui ao velório e chorei ouvindo a fala simples e profunda do filho, o quadro formado pela família imediata abraçada em mais uma despedida e choro novamente lembrando do seu semblante plácido e livre das dores físicas e do turbilhão de sentimentos, expectivas, dúvidas e percepções da mente.
Desde que recebi a notícia uma parte de mim chora junto com a família, mas outra se recusa a perceber como real o fato de que aquela consciência perspicaz, divertida e aquilina em seus voos não está mais voando pelos mesmos vales que eu e não nos encontraremos mais. E não só isso… Eu duvido que algo além da memória e dos ecos do que fizemos persista depois que nosso corpo deixa de viver.
Aliás… O amigo mesmo uma vez disse que, “antes da memória de tradução, existe a memória do tradutor: somos todos memória.”
Somos também perplexidade como a que sinto diante da dificuldade de aceitar que não existimos mais na mesma dimensão ou realidade. É… Tenho a humildade de aceitar que meu materialismo pode estar errado e talvez ele esteja olhando compassivo para mim nesse exato momento. Rindo um pouco, mas principalmente compassivo.
Ele terminou de escrever um livro que certamente lerei quando for publicado.
Nem todas nós escrevemos livros que serão absorvidos pela memória da civilização, mas tudo que fazemos ecoa na civilização como as ondas e as mais discretas ondulações nos oceanos que cobrem a Terra. Nossos nomes quase sempre acabam se diluindo, mas nossa influência ecoa, então que seja boa, que sejam boas na maioria das vezes.
Assim foi. Nas obras que ele traduziu, nas palestras que apresentou, mas ainda mais nos genes e memes que nos deixou com seus filhos, nas memórias dos amigos… somos todos memórias…
Em 2017 ele nos levou para o aeroporto. Minha esposa estava indo passar um mês fora em um intercâmbio de tradução. É a foto que ilustra esse post e talvez a memória que melhor sintetiza os ecos que ele nos deixou. Quando dissemos que não precisava ele disse que seria um prazer fazer parte da história da amiga.
Somos memória. Somos parte. Até já Daniel Argolo Estill…
Soube somente hoje e estou profundamente triste. Foi bom ler o seu texto na construção dessa perda. Obrigada.