Ontem tomei a primeira dose da vacina para nos proteger da covid-19.

Gatilhos:

Me vacinei de surpresa pois estava subestimando a seriedade da minha hipertensão, então passei em minutos de “não sei quando serei vacinado” para “é agora!”

Estou feliz? Mais ou menos.

É impossível estar feliz quando já perdemos quase 400 mil pessoas a mais do que teríamos perdido se tivéssemos agido para controlar a pandemia e sabendo que ainda estamos longe de tomar as medidas suficientes para contê-la e devemos perder ainda, talvez, centenas de milhares de pessoas impactando milhões que ficam sem o apoio financeiro, emocional, cultural e intelectual dos seus pais, mães, avós e até jovens tios e tias, irmãos e irmãs.

Como foi uma decisão intempestiva a sensação é…

Imagine que você sofreu um naufrágio. Que não tem nada a vista. Talvez uma boia precária em que segurar e algumas pessoas ao redor. A todo momento uma pessoa desaparece nas águas revoltas ou conta que perdeu alguém, amiga, da família, que sempre admirou e lhe servia de modelo.

Sinto que é como estamos no Brasil e certamente é como eu estava: sem perspectiva.

Nem me atrevia a pensar quando a vacina chegaria para mim, quando ela chegaria para qualquer uma de nós, pessoas perdidas num oceano em que as pessoas que deviam nos trazer socorro nos dizem para mergulhar para que tenha mais boias para elas.

Então a euforia! Os sinais de que tem uma praia naquela direção, que se conseguirmos continuar nadando chegaremos à praia “Esperança” na costa da ilha “Futuro”.

A euforia, no entanto, logo se transforma em lamento pois vejo ao redor que me deram colete inflável, celular via satélite, ração em embalagens herméticas, roupa de mergulho para resistir ao frio do mar, pés de pato e que alguns tem até jet ski enquanto a maioria luta apenas com as próprias forças contra as correntes.

Me sinto como a pessoa na imagem que ilustra o post: saindo resoluta das águas e espalhando-as ao meu redor como um escudo de proteção, com a praia logo à frente com uma tenda onde se lê “segunda dose”.

Pouco adianta gritar para as outras “Olha! Existe uma praia! Persistam! Mantenham o ritmo! Guardem suas energias e sigam sempre nessa direção! Falta pouco! Fiquem em casa! Não se aglomerem! Usem as máscaras pff2!”…

Pouco adianta porque sabemos que muitas ainda tem fortes correntes que fluem dos seus WhatsApps e de religiosos e políticos a serviço da morte, da praga, da fome e da violência. Além disso tem tanta gente que minha voz não alcança e, mais ainda, me soa tão falsa e egoísta minha voz a cada vez que vejo tudo que tenho à minha disposição para suportar a espera e a travessia.

Photo by Alwi Alaydrus on Unsplash

Hoje é dia das mães e não vou falar nisso porque minha relação com meus pais é desconectada, mas preciso dizer que decidi sair um pouco do rumo da praia e me arriscar a pegar uma corrente que me leve para longe porque uma amiga muito especial estava por perto e irá para longe novamente. Decidi ao longo dos últimos 14 meses em que saí do prédio 12 vezes, que depois da pandemia faria de tudo para abraçar toda oportunidade de encontro. Foi uma “quebra de protocolo”, não façam o mesmo sem ótimas razões e sem ter como tomar o máximo de cuidado.

Vi na rua numerosas pessoas se atirando nas correntezas frias para encontrar com suas mães… Já vimos isso acontecer nos últimos meses. Natal, ano novo, aniversários que eram o réquiem daquelas vidas, mas os que sobreviveram antes não enxergam, ou não querem enxergar os que se foram… Mais de 400 mil ignorados e ameaçados de esquecimento.

Não aqui…

Ainda vivo a euforia egocêntrica de que me envergonho, mas registro aqui que não podemos deixar de olhar para os que perdemos e que ainda perderemos até o fim desse naufrágio.

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