Foi quinta-feira passada: depois de mais de três anos finalmente entramos em um teatro novamente!
Há umas três semanas passamos em frente ao Poeira e vimos que Antígona estava em cartaz com a Andrea Beltrão e tradução do Millôr, uma que foi feita em 1969, no calor de tempos que inspiravam preocupações sociais e críticas a déspotas de ditadores.
O tema continua sendo atual, mas com outros personagens e diferenças nas nuances.
Comentei com a minha esposa como a sobrevivência daquele teatro e a montagem de uma peça tão significativa era um sinal importante da resistência a quatro anos de destruição política que superou em muito os danos dos dois primeiros anos pandemia da covid-19 até chegarem as vacinas.
Dois dias depois uma amiga comentou no Twitter que tinha comprado ingressos. Não nos víamos desde antes da pandemia, rapidamente e separados pela catraca do metrô quando fui entregar revistinhas em quadrinhos para o namorado dela. Além disso poucas vezes a gente tinha se visto pessoalmente.
Era a deixa! Vamos ver essa peça com eles! O namorado, amigo antigo e pessoa que admiro muito, acabou não indo, mas fica sendo um encontro para breve!
No dia tínhamos dermatologista no mesmo prédio da livraria Leonardo Da Vinci e, claro, passamos quase duas horas lá a hora de ir para o teatro. Nunca tinha ido à livraria mais crítica do Rio de Janeiro! Outra sobrevivência que nos dá esperança na força da resistência pacífica ao fascismo que tenta se alastrar pelo mundo.
Lá na livraria, veja só, encontro uma única e solitária edição justamente da tradução do Millôr para Antígona! Comprei! Claro! Não daria para ler antes da peça, mas li no dia seguinte.
De lá encontramos com a amiga, fomos conversando para o teatro etc. Uma noite excelente!
A última frase da tragédia, inserida furtivamente pela Andrea Beltrão foi o que faltava para a gente desmontar emocionados! Minha esposa chorou chegando a preocupar a amiga que não sabia como foi terrível para a gente a tomada do poder pelo fascismo em 2018, do medo justificável que tivemos. A frase foi algo como “Para Tebas acabou, não há mais esperança, mas para nós ainda há muita!”
A peça
Temos somente Andrea em palco fazendo todos os personagens e o coro e dá para acompanhar perfeitamente cada um! Mérito da atriz e do texto. Achei irretocável!
O texto, me parece, está todo lá, mas foram feitas algumas inserções muito bem vindas até para o público que conhece um pouco das tragédias gregas, afinal na época de Sófocles não tinha centenas de séries e culturas para disputar nossas memórias e certamente todos conheciam a genealogia completa de cada personagem.
Esses acréscimos são naturais e tornam a peça acessível também para quem nunca ouviu falar em tragédias gregas.
Muito embora o texto praticamente não tenha sofrido mudanças a interpretação da Andrea é repleta de nuances que nos ajuda a identificar facilmente paralelos com os últimos seis anos no Brasil e encontrar subtextos da trama que chegam a nos tirar algumas risadas muitas vezes de alívio por aparentemente termos superado o pior e de nervoso que ainda tenha muito mais pela frente.
O texto e a tradução
Millôr fez essa tradução em 1969 como eu já disse. O Brasil em plena ditadura e a cultura sofrendo a censura característica desses períodos. Nesse contexto traduzir um texto de mais de 2500 anos (a peça deve ter sido escrita em 442 AEC) é uma forma, até meio irônica, de escapar do escrutínio dos censores.
Não sei em que extensão a tradução localiza o texto naquele período histórico, mas tiranos, infelizmente, sempre estiveram por aí e talvez ainda piores antes quando eram equiparados a deuses ou supostamente protegidos, ou amaldiçoados, por eles.
A versão que comprei na Leonardo Da Vinci é da Paz & Terra, 12ª edição, 2023.
Logo na página 5 a introdução de Adriane da Silva Duarte nos lembra que “No centro da trama está a personagem coletiva do coro, que evoca a presença do cidadão e promove o vínculo entre espectadores e personagens, deuses e homens.”
Ao longo do texto vemos o coro, que inicialmente tende a apoiar Creonte, se sensibilizar com a causa e argumentos de Antígona. É como um embate entre duas figuras arquetípicas: o homem que domina e a mulher que acolhe. Mas esse é um de muitos significados que podemos ver na jornada de Antígona.
Diversas falas da tradução de 1969 se encaixam perfeitamente hoje.
Temos a hipocrisia de Creonte na página 25:
“Quero vos prometer ouvir sempre os mais sábios, calar quando preciso, falar se necessário e jamais colocar o maior interesse do melhor amigo e do mais íntimo parente acima da mais mesquinha necessidade do povo e da pátria.”
Sugiro assistir a peça guardando as reflexões para depois para não perder nada, mas dá vontade de parar e pensar na frequência com que o mais mesquinho interesse do agronegócio e de outras indústrias é colocada acima da mais desesperada necessidade do povo e da pátria.
A tentação é transcrever para cá todas as citações que destaquei e passei a limpo, mas vou deixar apenas mais uma, dita por Antígona:
“O povo fala. Por mais que os tiranos apreciem um povo mudo, o povo fala. Aos sussurros, a medo, na semiescuridão, mas fala.”
Lido hoje me faz pensar em como o coro, o povo, assim como no início de Antígona, foi seduzido pelo poder e pelo medo incutido sobre ele por décadas levando-o a tal desconexão da realidade que apoia os atos e interesses daqueles que querem apenas explorá-lo e até escravizá-lo.
Imagem: Andrea Beltrão como Antígona – página da peça no teatro Poeira