Palavra Encantada é um documentário brasileiro de 82 minutos que nos conduz a uma inebriante viagem pela essência da nossa música popular começando pela influência dos trovadores medievais, passando por suas raízes entre a criatividade pulsante dos morros sem esquecer de reconhecer sua importância para a literatura em um país onde o hábito da leitura não chegou a se tornar popular antes da chegada do rádio, da TV e, claro, da música.
O documentário entra em cartaz na próxima sexta feira, dia 13 de março.
O trabalho de montagem é o grande segredo desse documentário que acaba se livrando desse rótulo como se ele fosse um trilho indesejado que impedisse os movimentos imprevisíveis da alma.
Nós sabemos que a música… Aliás toda forma de arte, tem essa paradoxal qualidade que permite que o humano mais simplório e sem estudo possa produzir ou pelo menos iniciar novos tipos ou linguagens artísticas. Foi o que aconteceu com o Jazz, foi o que aconteceu com nossa música.
Veja o filme pois só assim você perceberá como nossa música é especial, mas vou tentar compartilhar um pouco, afinal esse é um país onde o conhecimento não se distribui igualmente (ainda) e você pode não ter acesso a ele.
Trovadores
Na idade média os trovadores eram o que havia mais próximo da imprensa, eram eles que traziam as notícias do reino e as crônicas da vida diária que ridicularizavam as incoerências e exaltavam as conquistas.
Nossa música também assumiu esse papel desde o início do século XX pelo menos.
Era dos sons do morro que vinham as crônicas de um Brasil que estava nascendo para sua identidade própria e desenvolvia sua cultura canibal.
Desde o início uma das nossas características foi o canibalismo de todas as culturas que chegavam aqui e eram logo absorvidas por nosso sotaque. Talvez seja uma vingança silenciosa das tribos canibais que perderem essas terras com a chegada do branco europeu.
Letras, literatura, poesia
Discute-se muito se letra de música é poesia, o próprio Chico Buarque rejeita a alcunha de poeta, e ele escreveu Construção!
No entanto o fato é que no Brasil a literatura e poesia por muito tempo só chegaram a nós traduzidas pela música e não só pela pena erudita de Vinícius de Moraes, mas também pelas vozes simples do morro que claramente iam buscar inspiração na literatura que seus vizinhos não liam.
O Cordel
É impossível não se emocionar com os relatos apaixonados que Tom Zé e Lirinha fazem dos duelos de cordel onde eles tiveram seu berço.
As vozes simples dos nossos repentistas nordestinos, tão distantes da nobre literatura, engendravam um circo de acrobacias sonoras e semióticas sem igual!
Um caldeirão que mais tarde virá a alimentar também o nosso movimento Hip Hop.
A voz do morro e a bossa nova
É bem provável que você já saiba da estreita relação da Bossa Nova com o samba do morro e da proximidade dos músicos de berço mais privilegiado como Vinícius e a originalidade selvagem de gente como Dorival Caymmi, mas resolvi citá-la aqui como ponte de ligação com o último tópico que me chamou a atenção e considero o mais importante do documentário.
Rap, Hip Hop, a nova voz do morro
Por vezes vejo um certo consenso de que já não há mais arte nos morros, que suas vozes foram caladas pelo tráfico de armas, drogas e outros empreendimentos do crime organizado que se instala onde antes apenas o galo e o samba cantavam.
São outros tempos no entanto! A voz do século XXI não é a voz da rotina pobre, mas o rosnado da consciência que precisa de espaço, o som agressivo da fera que precisa ser ouvida acima da violência que não vem apenas do crime, mas também da cegueira autoimposta da gente do “asfalto”.
Os artistas de um lado continuam visitando os do outro. A literatura continua indo ao encontro do morro. A crônica da vida diária de uma parte ignorada do nosso povo continua descendo do morro: MPB e Rap se encontram para engendrar uma nova cultura para nossa alma sempre rebelde e a alienação não é o tom dessa nova música.
Conclusão
A Palavra (En)cantada termina nos deixando com a missão de refletir e perceber que o futuro que desponta lá na frente já está aqui hoje e, mesmo sendo obscuro, é algo de que podemos nos orgulhar pois algumas vezes as sombras revelam os becos escuros que esquecemos no caminho.
Entrevistados
Adriana Calcanhoto, Antônio Cícero, Arnaldo Antunes, BNdegão, Tom Zé, Martinho da Vila, Black Alien, Chico Buarque, Ferrêz, Jorge Mautner, Paulo César Pinheiro, Zélia Duncan, José Miguel Wisnik, José Celso Martinez Correa, Lenine, Lirinha (Cordel do Fogo Encantado), Maria Betânia e Luiz Tatit.
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