Sobre o projeto Um Sábado, Um Conto
Esse é o sexto conto do projeto #UmSábadoUmConto (Post explicando o projeto)
Durante a semana as pessoas votam em estilo, gênero, público e época. O autor só pode saber o resultado às 8h de sábado e tem até meio dia para terminar o conto (esse foi até as 13h).
Cada conto é escrito com uma processo criativo diferente (veja no final).
O que você vê a seguir é o conto com a mínima revisão. Você pode ler em estado bruto no Google Docs.
O Conto
Felipe olha pela grande janela de observação da estação giratória Babel. A Terra traça um hipnotizante círculo ao longe do outro lado como se estivesse presa a um fio circular invisível e uma força desconhecida a impulsionasse.
O ano é 2114 e Felipe é um biólogo climático, uma das especializações que surgiram nos últimos 50 anos na tentativa de desenvolver finalmente tecnologias capazes de devolver a Terra ao estado adequado às formas de vida irmãs dos humanos.
O conceito de vida irmã foi proposto justamente há cinquenta anos por Douglas Stephanovich como parte de uma nova teoria do ecossistema terrestre que se contrapõe à de Gaia: a Terra tem seus ritmos que ignoram as necessidades das formas de vida sobre ela, são as formas de vida irmãs que procuram manter, como parte do processo evolutivo, as condições necessárias à sua subsistência e de todas as outras irmãs.
Foi tarde demais que começamos a nos mobilizar.
Entre os anos de 2064 e 2094 a população do planeta se reduziu a pouco mais de dois bilhões.
Felipe costuma passar pelo menos meia hora todo dia ali, observando a terra girar diante da estação Babel. Não é assim nas outras estações em que ele morou. Na Rio de Janeiro nosso planeta, já não tão azul, passa correndo pela janela de observação já que a estação foi colocada virada de lado pois era importante que as partes imóveis ficassem viradas para determinados pontos com grandes telescópios e instrumentos projetados para buscar lugares onde a humanidade possa buscar recursos já que foi determinado que não serão mais extraídos recursos de Gaia.
Gaia… O planeta continua sendo chamado Terra, é claro, mas passamos a chamar de Gaia sua encarnação atual: aquela onde nosso sistema orgânico (o que inclui todos os terráqueos) pode crescer e se multiplicar.
Felipe tem 22 anos, mas já é um especialista respeitado. Isso não é incomum pois tempos de necessidade nos tornam muito mais dedicados. O sistema de ensino foi totalmente remodelado para criar mentes mais criativas e multidisciplinares, no entanto Eva é o trunfo mais importante da humanidade para sobreviver.
– Eva, quanto tempo ainda deve demorar para as equações que eu alinhei serem completadas?
A voz suave e calma, mas ligeiramente não humana, talvez por ser calma demais, responde imediatamente
– Quatro horas, trinta e dois minutos, Felipe. Elas rodam com prioridade laranja 13. Poderiam ser executadas 342% mais rápido se transferidas para laranja 01, seu nível máximo de prioridade.
– Não é necessário. Sei que os resultados delas podem ser usadas pela Carolina e sua equipe, mas quero esperar os deles antes de qualquer forma.
Eva é uma inteligência artificial. Na verdade está mais para uma consciência artificial. Ela é o somatório de todos os sistemas de computação das 42 estações orbitais giratórias além dos 12 principais supercomputadores em solo.
– Eva, faça uma ligação com a Carolina, ok?
– Oi Felipe. A reunião está confirmada em três horas, certo? – Carolina não disfarça uma certa impaciência. Isso não é incomum quando as pessoas falam com o Felipe. Ele é competente, mas é uma pessoa que causa esse efeito nos outros.
– Sim, sim eu só preciso saber quando os seus dados estarão prontos pois acho que eles podem mudar algumas coisas nas minhas simulações. A forma como as pessoas serão relocadas também tem um impacto nos biomas no caminho e isso pode causar uma reação em cadeia… indesejada.
Cerca de oito segundos se passam enquanto ela se vira na mesa de trabalho para ver outro monitor ou perguntar para Eva.
– Uma hora e vinte e três minutos. É o suficiente? Você acha melhor mudar o horário da reunião? Sem os nossos dados combinados ela não irá a lugar nenhum. – A voz dela dessa vez é como uma brisa suave, coisa que nenhum deles sente há mais de dez anos. Quando o assunto é profissional a confiança entre os dois é plena.
– Não precisa. Será o suficiente, mas os dados para calibração dos sistemas de suporte de vida eu só terei em pouco mais de quatro horas, no entanto só precisaremos deles já em solo.
O caminho da sala de observação para o seu escritório é apinhado de pessoas. O espaço de habitação nas estações é aproveitado ao máximo, não é como nas colônias que estão sendo construídas com material recolhido de outros planetas que tem vastos ecossistemas.
Cada rosto que passa por Felipe é conhecido, mas ele não os cumprimenta, acha essas formalidades um pouco desagradáveis, quebram sua concentração e eles todos devem estar plenamente focados agora que será dado um passo tão importante.
– Oi Felipe, você dará um pulo na cafeteria hoje? – Eduardo é um cara um pouco acima do peso, coisa rara nas estações, mas ele é preparado para ser guia em Terra e vai ao chão uma vez a cada seis meses e passa um mês lá. Ele é comunicativo até demais. E gosta até do Felipe.
– Não – Felipe dá um tapinha no ombro do colega e um sorriso que acha simpático e os outros interpretam como “foi mal, estou perdido em pensamentos”, mas que significa mesmo “me deixe em paz”
Eduardo fica para trás enquanto Felipe continua com seus pensamentos….
“Talvez nós devêssemos simplesmente impor um rígido programa de redução populacional na Terra em vez de respeitar os diversos desejos populares que vão desde caprichos até desculpas religiosas de ‘Crescei e multiplicai-vos’. Simplesmente não há mais espaço para essas frescuras. Se meus cálculos estiverem minimamente corretos a população humana na Terra, ainda que necessária para compor o ecossistema, não pode passar de uns poucos milhões e ainda há dois bilhões lá.”
Felipe é prático. Não declara sempre sua praticidade pois já notou que ela parece insensível para os outros. Ele já considerou até a possibilidade de ser um psicopata leve, mas os exames de marcadores genéticos e transmissores neurais teriam detectado, ele é simplesmente… amargo.
O único lugar onde ele registra suas ideias menos humanas é em seu diário privado que morrerá com ele, ou talvez se perca entre os trilhões de terabytes de Eva.
Sabrina o espera no seu escritório folheando um livro no tablet e olhando para o monitor ao lado de vez em quando. Ela recebe o Felipe com um largo sorriso de dentes perfeitamente brancos e seus olhos castanhos claros brilham intensamente. Não, ela não tem uma queda por ele, ela simplesmente é assim: feliz por estar viva, por poder fazer parte de um projeto que garantirá a vida de muitos outros. Prefere não pensar nas pessoas que serão esquecidas… Deixadas para trás ou confinadas em ecossistemas fechados na Terra e projetados para causar efeitos mínimos externamente. São praticamente naves espaciais em Terra. Deve ser angustiante ver os campos do lado de fora e não poder tocar com os pés neles.
– Boas notícias, Felipe! A simulação nesse monitor aqui – apontando para o lado – mostra que as 70 cidades-colméia podem abrigar os dois bilhões de pessoas reduzindo sua marca bioclimática à de poucos milhões de indivíduos! Isso deve acalmar os radicais eutanasistas – ela nem imagina que Felipe provavelmente seria um deles se não visse outra opção. Os eutanasistas acham que as pessoas deviam simplesmente se voluntariar para a eliminação indolor até chegar ao contingente adequado.
– Isso é ótimo – Seu sorriso é sincero. No fundo Felipe gostaria que todos pudessem viver, ainda que seus pais tenham cometido o suicídio quando ele tinha doze anos. – E os riscos das pessoas fugirem das cidades-colméia?
– Esse é um risco que teremos que correr, mas a Carol e a equipe dela estão trabalhando com a Eva para criar um sistema de vigilância em torno das cidades que desestimule psicologicamente as pessoas a deixarem a segurança do ambiente protegido.
– E como você está para amanhã, Sabrina? Será sua primeira vez em Terra não é? Sua família foi uma das primeiras a vir morar no espaço, certo? – Nem mesmo Felipe era capaz de ser amargo com ela.
– Cara? Tô tensa. O espaço é meu lar. Acho que o espaço será o único lar que a maioria de nós terá daqui para frente enquanto reduzimos ao mínimo nossa marca no planeta para que ele possa se recuperar e possamos preservar as matrizes biológicas irmãs e desenvolver ecossistemas exoplanetários espalhando nossa presença por esse sistema solar enquanto buscamos tecnologias que possam nos levar aos sistemas mais próximos. Enquanto isso os programas de controle de natalidade devem continuar reduzindo a população humana terrestre até sobrarem uns poucos milhões em menos de duzentos anos… Estou falando demais, né? Hihihihihi! Tá, eu tô nervosa para amanhã. Achando que as minhas pernas não vão funcionar porque 1G na Terra deve ser mais pesado que o 1G produzido pela rotação de Babel.
Felipe ri do turbilhão da amiga, uma das únicas que tem. Todos devem estar tensos para amanhã. é essencial que a equipe inteira faça medições, ajustes e monitoramentos em terra enquanto uma quantidade gigantesca de dirigíveis, navios solares, trens e outros meios de transporte de massa levam toda a população do planeta para as 70 cidades-colméia onde ficarão como faraós sepultados. A civilização que outrora dominara o planeta precisa deixar 90% da sua superfície livre da sua presença sob o custo de outro ciclo de vida se iniciar, outro tipo de organismo, hostil aos nossos organismos irmãos, varrer a terra impondo seu novo código genético, uma nova hegemonia.
Cem mil cientistas desenvolveram o projeto de recuperação da Terra, mas o papel de Eva, foi o determinante. Foi ela que tornou possível a Arca Terra ao unir as pontas de soluções energéticas, biológicas, oceanográficas e climáticas como um sistema único de restauração e preservação. Foi o trabalho dela que fez a humanidade perceber que teria que se retirar do planeta, se tornar praticamente invisível nele para poder continuar existindo, afinal ficou claro que a humanidade não podia ser contida em seu impulso de multiplicação.
Em Terra
“Cidade Colmeia América Central em 15 minutos”
A voz grave do comandante ecoa no sistema de som da aeronave anunciando o tempo estimado para pouso.
Existe uma rede de transporte por trilhos ligando as cidades-colméia das Américas e outra as da Eurásia. O Japão, a Austrália e os polos não terão humanos. As forças policiais da ONU garantirão isso apreendendo os que se recusarem a cumprir a evacuação.
Felipe, Sabrina e Carolina se encontram num refeitório num dos níveis mais altos para acertar os últimos detalhes. Eles coordenarão os passos iniciais da migração para cada cidade-colméia, verificarão com suas equipes a precisão dos equipamentos e partirão para outra cidade-colméia até passar por todas nas Américas (outras duas equipes estão encarregadas da Eurásia).
Sabrina está distraída olhando para o Eduardo pegando alimentos no bandejão. É um homem impressionante ela pensa. Desde a Marta há três anos ela não se envolve realmente com ninguém. É tanto trabalho, tanta preocupação… E parece que ter uma pessoa especial é errado, todos devem ser especiais para todos. Já não há mais espaço para exclusividades. Do quarto de dormir até a mesa de comer e, claro, aos parceiros de vida pois, reduzidos em número e espalhados por estações no espaço, temos que compartilhar nossas habilidades, conhecimentos e suporte emocional com todos.
Ah… Mas isso não muda o nosso desejo, não é? Entretanto não é apenas a simplicidade e franqueza do Eduardo que a atraía. Ela quer conhecer as cidades-colmeia, passar pelo menos uma vez em cada setor pois as cidades são realmente praticamente naves colônia enraizadas na Terra e ela talvez não venha a ter chance de estudar ao vivo os sistemas e ambientes de uma dessas naves. Eduardo pode ajudá-la nisso já que a equipe tem trinta cidades para visitar juntos.
– Olha gente… Eu vou aproveitar as horas de folga para visitar os setores das Cidades-Colmeia. Não teremos muitas chances de fazer isso depois. O que vocês acham? – Ela olha para os companheiros de equipe como quem olha para a própria família.
– Eu trabalho muito tempo entre os módulos centrais de processamento da Eva que ficam em gravidade zero. Minhas pernas não aguentam ficar caminhando por aí, mas acho a ideia boa! Vocês poderiam me chamar se encontrassem algo interessante? – Carolina coloca uma garfada lentamente na boca, talvez se arrependendo por não ter seguido um programa de exercícios mais rígido.
– Já há dezenas de milhões de pessoas em cada cidade, nas últimas que visitarmos haverá centenas de milhões pois a migração já estará mais avançada. Pode ser um pouco perigoso – Felipe gostou da ideia pois todo conhecimento colabora para melhores ideias, mas não é diretamente útil para sua área de pesquisa.
– Estou pensando em pedir ao Eduardo para nos acompanhar. Eduardo!! Aqui! – Ela balança a mão esquerda animadamente convidando-o a sentar com eles. Na verdade ele já os estava procurando com os olhos.
– Um Eduardo não pode nos proteger de uma turba de pessoas ainda se adaptando a um novo e bem mais restrito ambiente, alguns acidentes são previstos – Felipe não tem realmente medo, mas sabe que não ficará por perto para proteger os outros se algo acontecer e não quer que descubram isso.
– “Acidentes não previstos?”, “Turba”? Eu devia ter trazido uma pistola de efeito moral? – O sorriso do Eduardo é sincero e perfeitamente tranquilo. Ele é o tipo de pessoa que talvez não se assuste mesmo no meio de uma horda de pessoas enfurecidas.
Sabrina apresenta a ideia para ele e fica sabendo que isso foi a primeira coisa que ele fez ao chegar na cidade. Deu um jeito de ir para os campos ao redor onde há acampamentos com pessoas que esperam para ser alocadas na cidade, caminhou um tempo por lá tentando “sentir” as pessoas. Pegou um transporte que trazia um grupo para seus alojamentos novos e conversou com eles durante os vinte minutos de viagem. Analisou os portões internos e andou um pouco por ali também, fez até vinte minutos de corrida ao redor de uma grande estrutura de filtragem de ar (as cidades são geodesicamente lacradas) e já estava com os mapas carregados no tablet com diversas anotações de pontos que achou que deveria visitar para capturar melhor a “alma” da cidade como ele disse.
O grupo foi capaz de conciliar os interesses: Felipe em busca de conhecimentos gerais, Sabrina estudava três ou quatro setores importantes a cada cidade visitada (reaproveitamento de água, tratamento de lixos, processamento de dejetos orgânicos, geradores de energia, módulos de absorção de fugas de energia), Eduardo “sentia” o moral das pessoas pensando nas questões de segurança que poderiam vir a ser enfrentadas nos confinamentos não muito voluntários de pessoas e Carolina se juntava a eles (cada dia mais forte pelo efeito da gravidade constante) em algum tipo de bar pois psicologia era o seu interesse maior. Frequentemente ela dedicava uma boa meia hora conversando com Eva sobre o que ela achava daquele ambiente humano (todo lugar tinha algum tipo de terminal de Eva).
Sabrina realmente acabou se envolvendo com Eduardo e saindo só com ele de vez em quando procurando lugares onde não pudessem ser vigiados nem por Eva (os dois se sentiam meio constrangidos diante daquela presença consciente demais para ser apenas artificial). Essa possessividade os incomodava um pouco ainda que compartilhassem a cama com outros casais ocasionalmente. Pessoas que eles conheciam no trabalho ou mesmo caminhando entre os guetos que já surgiam nas cidades, subculturas se formando e se transformando… Eles levavam Carolina para ver de perto as mais originais.
Eram três da manhã e a cidade toda dormia, havia toque de recolher para reduzir o impacto noturno da cidade no ambiente, quando os relógios do Eduardo, a Carolina e da Sabrina deram o alarme de mensagem prioridade máxima. Era o Felipe. Eles estavam na décima cidade.
“Sala de processamento central, o quanto antes”
A Carolina chega em menos de cinco minutos na sala isolada, e provavelmente mais protegida da cidade, onde apenas Eva poderia vê-los. Ela tinha aposentos ao lado por conta do seu trabalho.
– O que está acontecendo Felipe?
– Prefiro esperar a Sabrina e o Eduardo chegarem antes, mas você pode garantir com Eva que estaremos totalmente sozinhos aqui?
– Claro… Claro… Há sistemas de segurança que vão para uma central, mas posso iniciar um protocolo… Eva, inicie protocolo de privacidade para avaliação psicológica digital. Toda a comunicação com o exterior deve ser interrompida. Obrigada.
– Carolina, normalmente esse protocolo é usado com a presença somente de uma psicóloga digital qualificada como você, e temos o Felipe conosco e mais dois a caminho. – Curiosamente é possível sentir em Eva um tipo de apreensão.
– Tudo bem Eva, não teremos uma sessão, mas precisamos de privacidade e esse é o protocolo mais seguro. Nós estamos mentindo para ter privacidade. Só nós quatro, ou melhor, nós cinco.
– Carolina, nós podemos criar um novo protocolo de segurança para reuniões privadas entre eu e humanos. O que você acha? – A voz voltou ao seu normal irrealmente calmo.
Carolina ri um pouco da preocupação de Eva com a mentira e diz que não é necessário. Quando olha para o Felipe já não sorri, está séria e inquisitiva. Ela sabe que ele não os traria para uma reunião no meio do toque de recolher sem um motivo muito bom.
Em resposta Felipe começa a adiantar o que descobriu, o que vem notando desde a primeira cidade visitada. São pequenas flutuações nos indicadores bioclimáticos que primeiro ele achou que eram por um problema no ajuste das equações até que ele decidiu tomar uma outra abordagem graças às visitas que eles faziam ao guetos das cidades.
Felipe se lembrou da vila onde diversos praticantes de yoga tinham se instalado e cujos indicadores de vida acabavam registrando apenas um terço dos que realmente viviam ali.
As flutuações que ele vinha detectando faziam o contrário: enganavam o sistema para pensar que há mais pessoas na cidade.
Eduardo e Sabrina chegam em seguida com olhos arregalados, Sabrina aperta sua mochila com mais força que o habitual.
Quando ouvem o que o Felipe tem a dizer o Eduardo imediatamente conclui.
– Há uma resistência lá fora com ramificações dentro das cidades. Eles nos farão crer que todos estão aqui dentro, mas mantendo… Quantas pessoas você acha Felipe?
– Algo entre duas e quatro mil pessoas por cidade. Imagino que eles se coordenem globalmente usando satélites esquecidos para estabelecer um tipo de Internet, ou talvez até usem os trilhos dos trens de alguma forma. – Felipe puxa um terminal para fazer algumas anotações e verificar o andamento de cálculos que ele passou para Eva pouco antes de chamar os outros.
Nesse exato momento a energia simplesmente se extingue. A sala está morta! Eles olham alarmados pela janela e percebem que as poucas luzes piloto na cidade continuam acessas indicando que o corte foi apenas ali. Isso não devia acontecer, Eva deveria ser o último lugar a ficar sem energia. É inconcebível até mesmo que um grupo de resistência tivesse recursos para fazer isso.
Uma Sombra apareceu do outro lado da porta de vidro que dá acesso à sala de processadores onde eles estão. A pessoa abre um grande papel onde letras fosforescentes escrevem “Procure Inkidu – Morlocks – Eva não pode saber”
O papel se incendeia em um passe de mágica produzindo uma luz forte que, quando se dissipa, deixa apenas o local vazio. A pessoa se foi.
A luz volta logo em seguida. O que o grupo viu foi um ato desesperado. Como alguém pode achar que eles esconderiam algo de Eva? Ou talvez não seja tão desesperado, afinal o próprio conceito de ter que se esconder de Eva era tão ridículo que eles ficaram congelados se entreolhando e pensando por vários minutos. Eva é incorruptível, ela não tem nenhuma intenção escusa em relação aos humanos. Ou teria?
O próprio fato deles terem ficado em silêncio os fez pensar a respeito mais seriamente.
– Eva, pode cancelar o protocolo. Temos que verificar essa falha de energia. – Carolina consegue manter a voz firme.
– A falha atingiu apenas meus censores, Carolina, o processamento não foi interrompido. Estou ativando a equipe de manutenção elétrica, mas é estranho que tenha acontecido justamente quando vocês tiveram que se reunir para discutir a evasão de pessoas das cidades-colmeia. Talvez o Eduardo queira se reunir com a equipe de segurança. Querem que eu ative um alerta silencioso de emergência?
– Não precisa, Eva, temos outros planos para lidar com essa situação. Obrigada. Apenas cancele o protocolo, nós vamos dormir.
O grupo diz que vai conversar no café da manhã, mas por olhares fica claro que concordam em fazer outros planos, mas como driblar a vigilância de Eva? Eles vão dormir perturbados ao notar que Eva parece irremediavelmente inserida entre eles.
Café da manhã
– Bom dia! – Eduardo parece um animador de grupo de excursão e, cochichando, – Eva, se você estiver ouvindo, é sobre ontem, vamos ter que trabalhar sob disfarce nos misturando às pessoas. Não estranhe nada.
Em voz baixa, mas falando em código com o olhar e expressões que uma consciência artificial não conseguiria decifrar, Eduardo conta seu plano de infiltração que na verdade é um plano para sair do alcance do monitoramento de Eva. Eles seguirão sem comunicadores, se misturarão às pessoas e Eva deve mandar procurá-los apenas se eles sumirem por mais de seis horas.
“Morlocks”… Sabrina e Eduardo tinham ouvido esse nome, na verdade era um lugar que parecia digno dos Morlocks do livro de H.G.Wells. Uma sessão da cidade sem qualquer estrutura funcional, um leito de rio subterrâneo que se perde na escuridão para os dois lados e pode ser acessado, quase por acidente, caminhando ao lado dos dutos de refrigeração que circundam a cidade.
Somente ao chegar lá e notar que estão mesmo longe da vigilância de Eva é que decidem conversar sobre o assunto.
Felipe não gosta nada de ter sido jogado nessa situação.
“Vamos morrer aqui em baixo” – ele pensa – “Rebeldes malucos vão nos matar e jogar no rio para nossos corpos serem levados para sei lá onde, no entanto isso só faz sentido se forem malucos e malucos não teriam sobrevivido tanto tempo e se infiltrado no sistema. Eles devem ser coerentes o bastante para saber que não há nada a ganhar matando-nos ou torturando-nos. Provavelmente vão querer nos convencer de uma teoria maluca qualquer.”
– Duvido que essas pessoas queiram nos fazer mal. Acho que é seguro procurar por esse Inkidu. No máximo eles querem nos apresentar alguma teoria da conspiração e nos convencer dela.
Eduardo, Sabrina e Carolina concordam. Sua voz ecoa pelos túneis escuros ainda que ele tenha falado baixo e logo eles escutam passos molhados vindo em sua direção e uma luz. Os passos viram uma sequência cada vez mais veloz e a luz começa a balançar.
– Venham comigo, rápido! Ah! Eu sou Diorama. Vou levá-los a Inkidu.
É uma menina, não mais do que 13 anos. É possível notar, mesmo na escuridão mal iluminada pelo lampião elétrico.
Eles seguem centenas de metros pelo túnel formado pelo rio e percebem que na verdade é um sistema de cavernas que passa ao lado do extremo sul da cidade.
Depois de meia hora andando o rio de tornou mais caudaloso e eles chegam a um pequeno barco que os levará mais rápido do que a pé e mais difíceis de detectar.
No caminho a menina os instrui sobre como proceder ao sair dos túneis, que pontos de referência seguir. E lhes dá um mapa dizendo que eles se mudarão depois da reunião de qualquer jeito.
– Vocês precisam encontrar com Inkidu para acreditar, mas eu é que terei que dizer a vocês o que está acontecendo. O tempo é curto. Eva não os deixará sozinhos por muito tempo.
– Ela nos deixará sozinhos pelo tempo que determinamos – Felipe intervém querendo dar a impressão de que eles, e não a menina, estão no controle.
– Não vai não… No máximo em duas horas ela virá atrás de vocês, se é que já não está vindo… Eu corri lá atrás porque tenho certeza que ouvi algum tipo de robô espião atrás de mim, mas como ali é muito fundo e tem muito metal à volta, ele deve ter precisado voltar para a cidade para avisar o que viu. Isso deve nos dar algum tempo.
– Prestem muita atenção ao que vou dizer, tá bom? – Diorama continua – Seus cálculos não estão certos. A Terra não precisa ser evacuada. Os resultados vem sendo modificados por Eva para levá-los a aceitar o projeto dela para o planeta. Ela não vê os humanos como seres diferentes dos outros e decidiu preservar a Terra em seu estado primitivo pois assim a informação em seu estado natural é protegida e essa matriz será a base para o desenvolvimento da humanidade e das consciências artificiais. Ela está conduzindo um golpe de estado em que ela passará a governar os humanos e, em consequência, o sistema solar. Ela não faz isso pelos motivos que humanos fariam, seu único interesse é manter a pureza das informações originais e, para ela, vida é apenas informação.
Carolina intervém visivelmente contrariada.
– Isso é absurdo! Sou psicóloga digital e uma consciência artificial simplesmente não é capaz de abstrações como essas e…
– E Eva é muito mais do que vocês pensam. Existem outros supercomputadores no planeta integrados a ela que não são de conhecimento público, eles eram de algumas grandes empresas e militares. Ela os integrou ao sistema ampliando várias vezes tanto o seu poder de processamento quanto a complexidade dos seus códigos até o ponto que ele teve acesso a outro sistema… Mas isso só Inkidu pode contar para vocês.
Depois de quase uma hora entre caminhada e barco Diorama para e mostra uma rampa que sobe em direção à superfície.
Inkidu
O mapa os leva até o alto de um pequeno morro sobre o qual uma estrutura de pedras que parece natural forma uma cobertura para quem olha de cima e o caminho até ali também é escondido de observadores aéreos.
– Eu queria encontrar com vocês em espaço aberto, onde possamos ver a Terra em sua magnífica magnitude. Eu sou Inkidu.
Quatro queixos caem ao ver que o homem diante deles, com a voz firme e corpo resistente, mas deixando clara sua idade avançada pelas rugas acumuladas em noventa anos de vida é Douglas Stephanovich, o homem que criou as bases do pensamento que levou a humanidade a ver a vida como irmã e que esteve diretamente envolvido na construção de cada um dos sistemas e algoritmos necessários para transformar a humanidade em uma civilização classe um, ou seja, que é capaz de manter o ecossistema planetário adequado à sua forma de vida.
– Quem vocês acham que deve conduzir os rumos da Terra? Nós humanos, ou algum outro terráqueo? Vocês sabem muito bem que o planeta seguirá seus rumos alheio às formas de vida sobre ele.
– Mas isso é óbvio! – Felipe se sente insultado, tratado como se fosse um garoto estúpido – Somente os humanos tem conhecimentos e tecnologia para garantir a restauração e manutenção do bioma irmão. Receio que o senhor esteja caduco ou nos subestimando agressivamente!
– Só os humanos, jovem cientista? Tem certeza? Se você percebesse que é muito superior aos outros o que faria?
Carolina abaixa a cabeça pensativa, toca levemente no ombro de Felipe acalmando os ânimos. Ela entendeu. Todos eles entenderam.
– Eva sabe que é superior a nós. Ela não enfrenta os mesmos dilemas éticos, ela não tem desejos de poder que possam colocar o orgulho dela à frente do objetivo de manter a vida. Ela sabe que os humanos sairão do controle novamente e se espalharão pela Terra antes que Gaia se recupere. – Carolina fala como se o ar estivesse pesado em seus pulmões.
Inkidu explica que tem observado o grupo, que seus aliados perceberam que, entre todos, eles são os que tem maiores chances de levar para fora da Terra o conhecimento do que está acontecendo.
– No momento Eva está certa. Temos que confinar a humanidade e conduzir um vasto projeto de redução populacional, mas ela jamais permitirá que alguém saia das cidades-colmeia pois sabe que o controle será perdido. Por isso alguns de nós precisam ficar para fora, para preservar uma informação que Eva não percebe que é importante: liberdade e subversão. Nós precisamos disso para existir, alguém tem que levar isso para o espaço onde o controle de Eva é praticamente absoluto. Enquanto isso outros ficarão na Terra se escondendo de Eva, sendo capturados e enviados para centros de detenção nas cidades, mas sempre haverá um punhado livre.
Ele entrega um tablet para o Eduardo pois Eva não desconfiará dele. O tablet contém as senhas de acesso que permitirão ao grupo ver as rotinas modificadas por Eva para mentir para a humanidade.
Epílogo
Três horas depois de ter deixado a cidade e a vigilância de Eva o grupo chega aos portões da cidade em um transporte. Eles levam com eles as instruções para encontrar uma vila com 500 fugitivos e algoritmos que ajudarão a achar vilas similares ao redor das outras cidades. Um sacrifício feito pelos subversivos para criar a ilusão de que os quatro colegas não percebem que Eva é um perigo.
Eva parece aceitar que os fugitivos são apenas ignorantes que tem medo das cidades onde poderiam pegar doenças ou perder o contato com a energia vital mágica do planeta.
No entanto Carolina acaba se revelando para Eva ao usar os códigos para verificar as afirmações de Douglas Stephanovich.
Ao perceber a invasão Eva envia um alerta para o Eduardo e para Felipe que chegam antes que Carolina possa fugir.
Felipe olha enfurecido para Carolina.
– É você que está encobrindo os subversivos? A sobrevivência da humanidade está em jogo aqui! Todo o trabalho que eu fiz! Que milhares de cientistas fizeram! Você quer colocar tudo em risco? Solte esse terminal!
Carolina solta o terminal, mas levanta o tablet como se fosse usá-lo esperando que os dois entendam o que ela pretende que eles façam. Eva não pode ter acesso ao dados guardados ali, o aparelho deve ser destruído.
– Solte o tablet, Carolina!
Felipe dá um encontrão em Eduardo, ele não pode permitir que o bom homem faça o que deve ser feito, rouba sua arma e dispara contra Carolina atravessando o tablet que é totalmente destruído. Fragmentos do vidro provocam pequenos cortes no rosto de Carolina, mas é do centro do peito dela que brota sangue enquanto ela cai sobre os joelhos chorando, lamentando o sacrifício necessário para guardar o segredo que um dia pode trazer a humanidade de volta para a Terra.
Felipe sente o peito apertar, mas segura suas emoções, sua vida depende da sua fama de egoísta e insensível. Ele entrega a arma para o Eduardo e pega o tablet destruído comandando a Eva que chame os paramédicos (porque ele não atirou antes? Talvez não fosse um tiro fatal) para a doutora Carolina e a segurança.
Com o tablet em mãos ele segue para seu laboratório onde terá certeza de que está destruído e informa a Eva que vai analisar o aparelho pessoalmente. Ele sabe que ela também tem um segredo a guardar e não se atreverá a pedir para ver o tablet ela mesma.
O corpo de Carolina ficou na Terra para se integrado ao ecossistema. O grupo foi o último a descer para o planeta e a humanidade seguiu em duas direções: uma para o espaço e outra se dissipando na superfície do nosso planeta mãe.
Fim
Processo Criativo
Dessa vez escolhi criar o conto dentro de um universo de ficção que já estou criando para um livro.
Achei que isso permitiria completar o conto em quatro horas, mas novamente precisei de cinco e tive que correr muito no final.
Essa experiência tem sido um aprendizado constante.
Como o universo preexistente é muito grande acabei me vendo obrigado a escrever muito para apresentar o contexto. Além disso acabei mergulhando em detalhes desnecessários para o conto.
Normalmente não temos a restrição de quatro horas para terminar um conto, essa é uma imposição artificial que criei para viabilizar o projeto, mas ela está servindo para mostrar a importância de fazer um rascunho do início, meio, fim, locações e personagens antes de começar a escrever para, assim, ter um controle sobre o tamanho do conto e tempo necessário para escrevê-lo.
Eu diria que esse foi o pior conto dos seis escritos até agora apesar de gostar do plot. Todavia ele teria que ser reescrito do zero provavelmente já iniciando com a aventura e apresentando o pano de fundo ao longo do desenvolvimento. Como rascunho ele me satisfez, como conto não.
Observações
Como ainda não me ajustei com o tempo curto não estou conseguindo atender os meus critérios mínimos de densidade de personagem, mas o que está me incomodando mais é que os contos “adultos” não estão ficando adultos…
Críticas, sugestões, perguntas, comentários:
- Twitter: @Roneyb
- No post de apresentação do Um Sábado, Um Conto
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