Publicado originalmente em 6 de fevereiro de 2007 na revista digital Aguarrás, agora fora do ar.

Tive chance de assistir o espetáculo de dança contemporânea Bull Dancing do coreógrafo piauiense Marcelo Evelin em sua rápida passagem pelo Rio no teatro Cacilda Becker.

Recortes do espetáculo

Trata-se de uma dessas raras criações que nos conduzem a novas reflexões a cada vez que assistimos e é uma pena que não tenha permanecido mais tempo no Rio.

O tema gira em torno do folclore do Bumba Meu Boi, mas vai muito além dele.

Mitos como o do Bumba Meu Boi são poderosos e nos capturam facilmente quando o representamos. Sem qualquer cortesia os mitos nos carregam até nossos símbolos mais íntimos e pessoais.

É o que vemos em Bull Dancing, os símbolos do folclore servem de tapeçaria onde são expostas facetas dos dias conturbados dessa Era que parece ser um tipo de transição entre a sociedade do espetáculo e a do conhecimento.

O Auto da mulher grávida que deseja a língua do boi dançante que morre e ressuscita atendendo ao som da música está lá, mas é torcido como uma obra de Dali conferindo nova alma aos antigos símbolos.

Não sei onde os artistas desejavam nos levar, mas sei bem onde fui – essa é uma das principais qualidades da arte: despertar no observador significados que vão além das intenções do artista.

A intolerância sexual, a repressão a outras morais ou crenças, a polícia do pensamento, a redução do corpo a mercadoria, a violência contra a mulher e a indiferença da sociedade estão lá formando um mosaico desenhado com as formas de Bumba Meu Boi e seus personagens agora em uma roupagem contemporânea.

O folclore original retrata os conflitos de poder entre escravos e senhores, mas Bull Dancing mergulha em outros conflitos refletindo um mundo onde senhores e escravos não tem fronteiras bem definidas. Assim desloca o foco para o indivíduo versus a sociedade que nos envolve em suas festas (quando nos entregamos a ela), mas nos vira as costas se já não nos adequamos às suas regras.

“Alguém tem algo a dizer?” Nos pergunta.

Devíamos ter. Afinal estamos diante de uma rica e complexa colagem que até aqui nos conduziu da comédia ao drama, da apatia à indignação e que nos defronta com a violência que aceitamos calados.

Se Bull Dancing tem um denominador comum é o convite a interferir em nosso mundo e responder através da ação aos desafios que nos são apresentados. Trata-se de uma obra de rara qualidade simbólica e valor social apresentada em um período que precisa justamente disso; embora parte da produção cultural continue refletindo a estética vazia da sociedade do espetáculo.