Muita gente fica surpresa quando pessoas como eu, que são razoavelmente bem informadas e com gostos ecléticos, declaram sem pensar duas vezes que o único seriado que realmente acompanham é Doctor Who.
São literalmente centenas de seriados muito bem produzidos, com bons roteiros e atores, isso só nos EUA. Então o que os fãs de Doctor Who enxergam num seriado que tem uma estética trash e se esquiva a definições transitando entre terror, sifi, humor, romance, mistério e outros estilos?
Bem, antes de mais nada aviso que você pode continuar lendo esse post sem medo de encontrar spoilers, odeio spoilers (estragar a graça dos outros contando o que acontece numa história).
O que é Doctor Who?
Doctor Who é um seriado que passou na BBC de 1963 até 1989 e voltou a ser produzido em 2005 na mesma BBC.
O protagonista é um alienígena que parece humano e que se identifica apenas como o Doutor (the Doctor) provocando sempre a pergunta “Doctor who?”.
Para resolver a necessidade de trocar de atores ao longo de tantas décadas de série o protagonista não morre: se ele é mortalmente ferido ele se regenera ressurgindo com um novo corpo.
Ele é um viajante do tempo que vive aventuras em todas as partes do tempo e do espaço, sempre ajudando a resolver alguma ameaça muito embora muitas vezes ele vá a esses lugares aparentemente apenas porque ama a humanidade com todos os seus conflitos.
Ele sempre viaja com uma companhia humana, normalmente mulheres, mas não há necessariamente atração sexual entre eles.
A estética da série moderna é trash, em parte por ter que se manter fiel ao original, em parte por ser uma ironia que encaixa muito bem em seu espírito iconoclasta.
Definindo Doctor Who
Recentemente tive o prazer de ouvir Robert Shearman (um dos roteiristas do primeiro ano da série atual) em um evento na Blooks e lhe foi perguntado como ele define Doctor Who para quem não faz ideia do que se trata e… Nem ele sabe definir. Mas vamos tentar.
Na primeira temporada da série atual, de acordo com o próprio Shearman, nem mesmo a faixa etária da série estava defina. Eles não sabiam se estavam criando algo para crianças, adolescentes ou adultos.
Talvez isso tenha ajudado a definir uma das primeiras características da série: seu foco não é uma faixa etária, mas um tipo de visão de mundo que pode ser compartilhada por adultos, jovens e talvez até crianças. Uma filosofia de vida que reúne a pureza das amizades ingênuas (no melhor sentido da palavra) e o senso de responsabilidade e fidelidade que nos leva a nos sacrificar pelos outros.
A filosofia de vida em Doctor Who é a amizade pura e a disposição para se sacrificar pelo bem comum
Apesar da ambientação SiFi só recentemente os roteiristas passaram a se preocupar com a consistência científica e creio que isso jamais será um ponto central da história. Exceto nos episódios que brincam com paradoxos de viagem no tempo.
Se há um contraponto comum através da série é o humor. Ele está presente até nos episódios que tendem mais ao terror, à aventura ou ao romance.
Resumindo: Doctor Who é um seriado de humor com ambientação de fantasia SiFi, histórias que variam entre o humor, terror e aventura, mas sempre com foco na construção de amizades.
O que torna Doctor Who tão especial?
O que posso fazer é enumerar as minhas razões para ter elegido esse para ser o único seriado que realmente faço questão de acompanhar.
- Atitude diante dos obstáculos: Quanto menores são as chances de sobrevivência menos o Doctor parece levar o risco a sério, é como se ele fosse irresponsável ou inconsequente, mas o que vejo são duas coisas: “considerar os problemas maiores do que nós não nos ajuda a superá-los” e “Obstáculos são oportunidades para chegar a algo melhor do outro lado, nem que seja apenas a história de superação”
- Ele sempre tenta resolver os impasses pelo diálogo, sempre tenta chamar o outro à razão e raramente recorre à força
- Ele tem apenas 3 “armas”: conhecimento, uma chave de fenda high tech e amigos
- É uma obra humanista que nos convoca a admirar a humanidade muito acima dos mistérios do Universo
- Efeito Isaac Asimov ou Neil Gaiman: poucos autores conseguem manter uma narrativa onde um pequeno detalhe em um episódio tem relação com outros dezenas de episódios depois. Esse tipo de coerência e profundidade do universo criativo confere uma densidade narrativa que nos faz sentir como se aquilo fosse real
- Criatividade: É impressionante como os roteiristas da série conseguem iniciar os episódios de formas absurdas e ainda assim encerrá-los com coerência
- No final das contas todas as histórias são sobre amizade, confiança, sinceridade, enfim, sobre a construção de relacionamentos verdadeiros.
Você vai gostar de Doctor Who?
Se você gosta de histórias sérias e realistas, se ficção científica onde a ciência é absurda te incomoda, se você já não gostou do que leu nesse post é bem capaz de você não gostar. Tente Battlestar Galactica ou um bom livro, talvez His Dark Materials (no Brasil Fronteiras d Universo) de Philip Pullman.
Se você vê a vida com um certo otimismo, mesmo estando ciente dos enormes problemas morais que temos para resolver e se a ideia de reduzir os problemas a representações irônicas deles e, além disso, gosta de artistas que não se levam a sério demais então há chances de você curtir Doctor Who. Mas tenha paciência com a terceira temporada :)