Essa boca cheia de dentes não para de morder! Giro em torno de mim mesmo como um vira-latas alucinado tentando livrar minha cauda, mas a mandíbula impiedosa não se distrai nem por um instante da sua tarefa sagrada: não descansará até livrar o mundo da minha incômoda presença!
Quanto mais forte é a dor que sinto, mais cerro os caninos em mim mesmo, a dor é tanta que já deliro e me vejo acorrentado sobre uma rocha no alto de uma montanha esperando a ave que virá arrancar meu fígado. Ah! Mas as suas bicadas são gentis e sempre me dão tempo de me recuperar ao contrário desta bocarra que me devora incessantemente até me apresentar à inexistência.
Há uma risadinha, tenho certeza! Vem de algum canto atrás de mim, sempre nas sombras que preenchem a periferia do campo de visão. Ele saberia como sair desta situação, aliás, ele não tem uma consciência que pese e jamais devoraria a si mesmo.
A cada naco que engulo de mim mesmo sinto o sabor da culpa, da responsabilidade, do dever, do medo e de um mundo que parece uma galeria de arte com paredes repletas de belos quadros e nobres fantasias enquanto, do lado de fora, tem gente passando fome, que não consegue achar o prumo entre a realização e o prazer de viver inconsequentemente.
Olho com mais atenção para aquelas pobres almas ao redor do meu Louvre pessoal e seus rostos não são outros senão o meu próprio.