– As memórias servem para você não esquecer de si mesmo.

A frase vem do nada pegando-o distraído, mas sem surpreendê-lo.

Estava tão distante apreciando o movimento na praça no frio e ensolarado dia de outono que nem uma explosão seria capaz de romper o véu que o mantinha nos dias distantes quando ia de metrô para o curso pré-vestibular.

Ainda há pouco tinha ouvido os sinos do inferno tocarem mais uma vez. Foi isso que o arremessou ao passado. Eles ainda ecoavam em seus ouvidos enquanto o mundo se borrava diante dele e no lugar da praça aparecia o vagão do metrô.

Magro como um espantalho o Pica-pau imitava o dedilhar de uma guitarra enquanto reproduzia o solo entre os dentes, Ghandi – o terceiro amigo no grupo – fazia os sinos, ou talvez cantasse, ele já não lembrava.

Mais de vinte anos se passaram, mas o metrô hoje é estranhamente idêntico ao da época, muito embora naqueles tempos as mulheres fossem capazes de se defender dos assédios sem terem que se esconder em vagões exclusivos.

– É… Aquele garoto era bem deferente do homem que me tornei, né? Tinha esquecido dele por um tempo. Não tem muito que eu poderia lhe dizer, mas vejo que ele tem algumas coisas a me ensinar. Você tem razão, as memórias servem…

Lentamente retirado dos seus devaneios ele percebe que mora sozinho e não fazia ideia de onde poderia vir o comentário que agora ele respondia.

Quando consegue se desvencilhar das memórias e olhar para o lado só consegue ver uma sombra deslizando através da porta que leva ao corredor e ele sabe que um velho amigo está de volta, com os mesmos maus costumes de aparecer e sumir novamente sem deixar vestígios.