Deixo para trás a recepção iluminada da clínica do plano de saúde. Um retângulo de luz separado da escuridão da rua e dos prédios vizinhos, já com portas encerradas, ou permanentemente cinzas e fechados.
Passam das dez da noite e preciso esticar as pernas enquanto minha sogra e o filho esperam resultados de exames que ela fez para confirmar a virose que a levou para lá desorientada e fraca.
As pessoas, pelo menos temos a impressão, caminham pelo mundo buscando a luz, saltando de uma sala iluminada para outra transportadas por alguma caixa de metal, vidro e plástico. Auto-móveis…
Prefiro o transporte lento dos passos navegando por entre as brumas da noite, buscando as passagens esquecidas pela luz do dia.
Sempre me senti bem entre as trevas como se nelas estivesse não o mal, mas apenas o mistério, a introspecção, as coisas tornadas marginais pelas imposições de culturas assustadas que afastam, muitas vezes pela ação do ódio que mal disfarça o medo do diferente que lhes sussurra “a jaula em que você vive é uma ilusão… você pode ser outra pessoa… ter outra vida…”, o que não se encaixa no estreito espectro de “coisas normais”.
Eu, de-fi-ni-ti-va-men-te, não sou uma coisa normal… Assim como você e todas as demais pessoas. É apenas a prisão ilusória dos retângulos luminosos, não só as recepções e portaria, mas também aqueles que carregamos em nossas mãos, que nos faz temer a liberdade.
Pois meus passos entre as sombras vão me levando para uma região ainda mais escura de Botafogo, uns três quarteirões depois do cinema de rua que já teve nome de banco… Bancos não deviam dar nomes a templos da cultura, deviam dar apenas recursos silenciosamente, de preferência através de órgãos públicos, que por sua vez deviam representar os interesses coletivos… da coletividade de pessoas e não de empresas, que fique bem claro. Existem alguns assim.
Às 22h e várias voltas dos velhos ponteiros de um relógio até mesmo o retângulo luminoso que leva ao cinema já está apagado e escondido atrás de outras portas de vidro grosso. Lembro da livraria que mora lá dentro, com um acervo encantador e onde já vi muitos eventos de coisas não normais, de vozes que dissoam da voz normalizada com um tipo de auto-tune social.
Não sabia, mas estava em busca de algo para comer e acabei vagando até uma esquina, uma ilha iluminada com umas mesas na calçada, aquele característico balcão de vidro com salgados massudos atrás do qual costumam ficar expostas as frutas que revelam a variedade de sucos oferecida ali. Loja de Suco, como se costuma dizer já há muitas décadas.
Passo por uma jovem mulher que está parada entre a loja de suco e uma banca de jornal, também aberta até uma hora indeterminada da noite, talvez por 24h, um dos refúgios seguros para criaturas da noite, mesmo as que andam distantes do seu lar como eu.
A jovem tem uma tatuagem na batata da perna direita que é uma faixa que faz toda a volta, de havaianas, um short e uma blusa leve. Seu olhar mapeia o entorno, talvez esperando alguém, talvez avaliando a região ou ainda talvez simplesmente se alimentando da noite, assim como eu.
No balcão peço e já deixo paga uma vitamina de banana com aveia e observo que uma lata de cerveja vermelha e grande apareceu na mão da moça que continua entre os sucos e a banca de jornal onde, certamente, ela comprou a cerveja. Bancas de jornal, até as que não se materializam à noite, costumam conter uma variedade de itens, até mais do que jornais e revistas. Há 15 anos parecia que todas iam sumir por causa da digitalização da mídia. Puá! Nada disso! Se transformaram, principalmente as que carregam através do dia os vapores da noite.
Bebo lentamente a minha vitamina. Desde que me afastei das ditas “redes sociais” comerciais… onde muito pouco de “social” sobrevive e predomina um fluxo infinito, fugaz e superficial de estímulos criados por pessoas, ou melhor, por vassalos daqueles feudos digitais, em troca apenas da esperança da atenção, da sensação de existir porque teve “views”, “likes”, “shares”. Se o tronco cai na floresta e não tem ninguém para ver, então a queda será muda, nem mesmo existirá tronco ou floresta. Uma tolice que, da mesma forma que o medo tenta apagar o que “não é normal”, tenta condicionar a existência do mundo aos olhos humanos que o observam. A árvore está lá, a floresta está lá, as criaturas noturnas… Bem elas estão inclusive aí, entre um pensamento seu e outro, afinal todo humano é também uma criatura noturna. Mesmo se ela está presa à jaula dos estereótipos e da normose… desde que me afastei tenho andado muito mais tranquilo e gentilmente sem pressa pois sei que o importante do mundo acontece no seu ritmo atrás das brumas da minha atenção consciente.
Termino lentamente a minha vitamina e a jovem mulher sumiu. Tudo bem, pensei, é normal as pessoas sumirem entre as sombras à noite. Algumas vezes somem até sob o holofote atento do Sol.
Sigo meu caminho de volta para a clínica me afastando da ilha de luz da loja de suco, deixando para trás a banca de jornais, que quase não tem jornais, e passo em frente ao retângulo apagado do cinema e, quem diria, lá está a jovem com a lata de cerveja grande e vermelha na mão. Ainda “escaneando” o mundo com atenção, ou talvez com dispersão. Algumas vezes a dispersão do mundo resulta na atenção a outro mundo, aquele que acontece em nossa mente e onde caem árvores e florestas sem que ninguém mais saiba.
Não reduzo o meu, já reduzido, passo, não dedico realmente muita atenção à jovem, afinal, também eu, estou disperso do mundo e viajando entre continentes dentro dos meus mundos interiores. Também não sinto qualquer impulso para imaginar histórias para aquela moça, de quem ela seria, o que faria, para onde iria, com quem iria, se iria. A história dela pertence a ela e seria indelicado reduzi-la a objeto de devaneios de um estranho. Só guardei para mim o que ela emanava ao seu redor em uma região, que na verdade nem era escura, mas sim escurecida em contraste com o excesso de luz que esconde os recônditos do ambiente e que reflete nas superfícies claras. E ela emanava uma suave e luminosa bruma, como a condensação do ar frio perto do corpo quente, mas, claro, era uma noite quente de verão e a luz que emanava estava apenas atrás dos meus olhos e vinha da intensidade de vida que a moça parecia ter.
Logo à frente o retângulo luminoso da recepção da clínica me esperava como se tivessem se passado apenas 15 minutos e nada tivesse acontecido além do alcance das lâmpadas que jogavam seus raios através das paredes de vidro. Lá dentro sogra e seu filho aguardavam já animados com os sinais de melhora que se confirmariam com a libertação para voltarem para o silêncio da própria casa municiados com instruções e lista de remédios. Prontos para voltar para as luzes dos dias seguintes…
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