“Esse é um problema humano: o desenvolvimento científico e tecnológico dispara em veloz progressão geométrica para os céus enquanto o desenvolvimento moral segue atado aos instintos do corpo em lenta progressão aritimética por uma rampa bucólica”

Foi há 80 anos. Um dia quente de fevereiro no século XX numa cidade que ficava em um planalto seco no centro de um país que já não existe mais. Ali nasci pela primeira vez.

Nasci muitas outras vezes depois! 11 anos depois percebi que a criança morria e outra nascia, mas seis anos antes disso, com 5 anos portanto, morreu a criança que tinha heróis à sua volta e nasceu outra que tentaria ser heroína por si.

Mas estou trocando a ordem cronológica das coisas e isso incomoda muita gente conforme já percebi intrigado. Essa dependência da ordem cronológica nos faz perder a ordem lógica dos processos, a cadeia de memórias e fatos que moldam nossas consciências combinando de formas paradoxais o que vivemos, viveremos, pensamos ter vivido e sonhamos viver um dia.

O fato é que eu achava que a cada morte eu me regenerava em outro ser totalmente diferente, outro corpo, outros gostos, novos defeitos, qualidades a descobrir ainda.

Com certeza foi assim aos 26 anos, já minha quinta ou sexta vida, quem vai contar? Afinal não há um limite. Pretendo morrer muitas vezes ainda. Aos 26 achei que tinha morrido aquele que se deixava ancorar na Terra pelos traumas do passado (sim, há traumas do futuro que tememos) ou pelo senso de responsabilidade por aqueles que não eram responsáveis nem por eles próprios.

Tolice. Nós humanos não regeneramos totalmente a cada vez que morremos. Podemos nos ver diferentes no espelho, podemos mudar radicalmente nosso trabalho, hábitos e companheiros de viagem (sendo os amigos os que realmente deixam marcas quando nos deixam ou são deixados por nós).

Ainda assim devíamos observar os nossos vários “eus” como diferentes regenerações pois nos sentimos demasiadamente presos às nossas formas e hábitos, achamos que eles nos definem, que somos o que um dia dissemos, vestimos, comemos, amamos. Somos muito menos que isso, somos muito mais que isso.

Aprendi lá pela vigésima quarta regeneração (devia ter entre sessenta e setenta anos) que não só os humanos, mas toda forma de vida com a mínima auto-consciência é, na verdade, o processo. É a forma como lida com as coisas, a forma como se entrega ao mundo, como faz a ligação entre o que vê, o que vive e o que sente. É o tipo de laço que forma com as pessoas que encontra e mesmo essas coisas podem mudar quando se mostram obsoletas ou inadequadas.

É muito difícil encontrar a essência de um ser consciente pois todos se cobrem com tantas camadas que podemos facilmente navegar por sua consciência pelo caminho errado e nos perder por labirintos que jamais nos levarão ao centro de onde tudo emana, se é que há um centro, afinal talvez a consciência venha de fora de nós, do Universo à nossa volta ao qual nos moldamos para continuar existindo.

Eu já contava dezenas de regenerações quando descobrimos que a vida se estenderia indefinidamente, que a expectativa de vida estava mais ligada às chances de sofrermos um acidente do que à degeneração do nosso organismo e foi então que percebi como era importante que fôssemos capazes de eliminar os limites das regenerações, do que podemos mudar com elas.

Assisti muitos amigos definharem em vida incapazes de se regenerar e se adequar aos novos tempos. Muitos deles gritavam exasperados que nada realmente mudava, que a humanidade não tinha mudado em dez mil anos e que não mudaria nos próximos dez mil.

Se iludiam diante do desespero de ter que navegar por encruzilhadas que sempre levam para caminhos escuros no início e ter que deixar algo a que tinham se apegado e confundido com eles mesmos a cada uma delas.

Todos eles mergulharam na depressão da obsolescência e se desvaneceram do mundo deixando apenas o que todos nós deixamos: as influências que deixamos nas pessoas que entraram em contato com nossas palavras, exemplos, memórias… Ondas mortas do que fomos. Ondas que esperam encontrar com pessoas vivas que lhes confiram um pouco de ànima.

Sigo além dos 80 anos e percebo que não sou muito diferente deles e me apego à vida como eles se apegavam aos seus hábitos. Continuo em frente apesar disso alimentado pelo êxtase da existência, simplesmente não consigo deixar de me encantar com o Cosmos que, a todo momento, nos oferece um novo fenômeno deslumbrante. E não consigo me desapegar dos outros seres do Universo! Esses acidentes absolutamente fantásticos! Amontoados de átomos que assumem consciência e criam todo um Cosmos além daquele feito por matéria, um que é capaz de criar histórias, se apaixonar, odiar, sacrificar-se, trair, rir e chorar pelos motivos e das formas mais diversas.

Em todo esse tempo uma dúvida me assombra. O que devo abandonar a cada regeneração. Será ao menos que eu realmente tenho opção? Posso decidir por mim mesmo? Ou será que sou apenas uma onda no vasto lago cósmico que se modifica de acordo com as outras ondas que encontro?

Veja você que é aí que encontro o meu apego: às outras ondas… Sinto que estou pronto para abrir mão de tudo que pode ser dito sobre mim, mas não quero deixar minhas companheiras de viagem para trás, não quero que elas me deixem o que, naturalmente é impossível pois nossos caminhos podem até ser paralelos, mas cada um de nós é uma melodia contando uma história individual e, em algum momento, temos que seguir outra harmonia ou simplesmente nos extinguimos deixando apenas os ecos do que fomos.

Créditos da imagem: Laenulfean