Uma primeira vez aos 54 anos…

Tive um sonho que foi como ganhar uma nova memória da adolescência; de um outono na escola aos 16 anos que nunca aconteceu pois eu era outra pessoa muito diferente do jovem naquela realidade complementar… isso, complementar e não alternativa pois acordei sentindo como se tivesse vivido também aquela vida.

No entanto esse post não é sobre o sonho. É sobre os meus 14 anos que retornou junto com as brumas do sonho de outono.

Fui um adolescente tímido, mas no sonho estava no primeiro dia em uma nova escola, o professor parecia um de nós (tive pelo menos dois professores assim aos 14 anos no Sacre Couer: Leninson de geografia e Christininha de história), os colegas eram divertidos e carinhosos, sentei do lado de uma menina que lembrava uma colega que tive também lá pelos 14 anos e ela também foi carinhosa me ajudando a me ajustar na nova escola e todos riram dizendo que estávamos namorando. Nós também, afinal o que esperar de uma sala cheia de adolescentes de 16 anos?

Acordei leve, algumas coisas desse sonho de fato aconteceram, mas a sensação de pertencimento, tranquilidade e o ambiente caloroso e suave de outono são profundos demais para serem reais e, ainda assim, sinto como quando lemos um livro e sentimos como se tivéssemos vivido dentro dele… e era um livro de sentimentos puros e profundos.

Você deve saber de onde vem um sonho assim no meio da terrível pandemia de medo que nos joga uns contra os outros e nos contamina com desesperança vendo tantas pessoas que desprezam a outra pandemia, a da covid-19, espalhando-a entre inocentes.

As pessoas naquele sonho jamais seriam assim, nem se entregariam à pandemia de medo-ódio, nem ao entorpecimento da empatia diante das perdas da covid-19. O sonho é uma ferramenta para curar minha alma.

No entanto ele foi além ao me conectar aos meus 14 anos, um pouco mais jovem que aquele rapaz seguro e bem acolhido em seu primeiro dia num colégio novo. Aliás, fui para o Sacre Couer com 12 anos, acho, e fiquei lá por quatro anos.

A amiga que me acolheu no sonho era na minha realidade adolescente uma moça linda e desejada que um amigo me pediu para seguir uma vez para ver onde ela morava porque ele estava interessado.

Na época já achei estranho ainda que fosse tímido demais para falar com o meu “crush” da época, mas hoje percebo com um misto de vergonha pela invasão da privacidade de uma colega reduzida a um corpo e rosto objetos de desejo e de alívio por ter tido alguma noção de que aquilo estava muito errado além de ter amadurecido muito nos meses e anos seguintes… Aliás, continuo amadurecendo aos 54 anos. Devíamos todas, não é?

A memória mais forte que o sonho me trouxe, no entanto, foi da amiga que eu amava pelo sorriso, pela inteligência, pelo carisma e, principalmente por sentir que tinha o coração puro.

A gente teria vivido uma jornada especial se tivéssemos namorado, tenho certeza!

Nunca tive coragem de falar com ela. Quando quase juntei coragem ela e um amigo da turma começaram a namorar.

Perdi contato com quase todas as amizades do Sacreca, mas, veja só! Poucos anos depois, com uns 19 anos, encontrei com ela novamente! Nem lembro como.

Ela estava fazendo filosofia – eu disse que era uma mulher especial, né? – e eu já namorando a mulher com quem casei e continuo descobrindo a vida até hoje.

Fui com a namorada na casa dela e conversamos por uma tarde, outra tarde de outono aconchegante (a essa altura você já pode começar a desconfiar que 1- adoro o outono e 2- sempre acho que é outono quando existe amor envolvido), sobre como às vezes é estar sozinho porque muitas pessoas vem “tirar nossas casquinhas” e não eram as cascas do ovo que nos impede de sermos livres, mas a que nos reveste permitindo que nossa alma flua, como o tronco de uma árvore.

Perdemos contato novamente, mas o destino tem alguma predileção por nós e teve outro reencontro. Agora eu casado e ela também. No encontramos em uma livraria 24h em Ipanema e ela contou um pouco tímida, um pouco receosa, achei, que tinha casado com outra mulher.

Fiquei tão feliz por ela que até hoje, principalmente depois do sonho, me vem lágrimas aos olhos. Não que eu romantize a diversidade, mas porque ela estava feliz, seguindo sua jornada de descoberta e transformação…

Me ocorre agora que além da pureza de coração acho lindo quem está sempre em transformação (ainda que reconheça que é uma jornada árdua) e lá estava a paixão da infância navegando por outros mares, mas navegando! Capitã do próprio navio.

Me ocorre também que pouco estou falando da minha esposa, que estava presente em todos os reencontros porque nossas embarcações viajam pelas mesmas correntes, mas esse post é sobre a realidade complementar com a amiga com quem fui reencontrando ao longo do tempo como o Doctor reencontra a River (ok, referência übernerd, me perdoem, mas o paralelo é muito forte para deixar passar).

Depois do encontro na livraria, ainda na era pré Internet onipresente, perdemos novamente o contato, na verdade mantivemos aquele tipo de contato que a gente sempre vai perdendo conforme o outro vive novas experiências, constrói suas jornadas com outras pessoas e, afinal, fomos próximos por muito pouco tempo aos 12 ou 13 anos.

É… Você já adivinhou, né? Não sei como, mas nos aproximamos novamente e nunca mais perdemos de fato contato, ligados pelos Instagram da vida. Ela morava numa cidade que não era muito perto, mas nos encontramos algumas vezes para caminhar e conversar, depois ela se mudou novamente para perto de onde moro, mas nos vimos pessoalmente poucas vezes. Sempre com a leveza daquele sonho lá do começo… Uma amizade leve em que o que nos une é o momento e compartilhar a passagem do tempo, sem a confusão das estereotipações e carências que nos fazem reduzir os outros ou esperar que eles completem nosso vazio.

É… Acho que sou apaixonado pela amiga ainda e não é uma paixão platônica, mas é uma paixão de amizade como, aliás, tenho a… sorte? bênção de ter, talvez, mas é estranho usar essa palavra sendo ateu (rs). Além disso existe sim uma idealização da amiga. Nunca compartilhamos 1kg de sal como diz outra grande amiga, mas tenho consciência disso e de que, caso os ventos do destino decidam que algum dia navegaremos lado-a-lado teremos os desafios que toda amizade franca entre pessoas de alma transparente tem.

Mas, veja só, esse post era para falar da jornada complementar que imaginei para nós quando acordei: namorando, descobrindo juntos a sexualidade dela, o término que certamente seria difícil para os dois, mas tenho certeza que a amizade seguiria ainda mais forte e eu teria sido outra pessoa, teria aprendido muito mais cedo sobre a nossa diversidade, ela teria me levado um bocado de filosofia e eu um monte de perguntas. Receio que eu a teria magoado como magoei várias vezes minha esposa, mas eu também teria percebido meus erros e teria mudado como mudei e continuo mudando. Talvez nem ela nem eu tivéssemos casado, quem sabe? Aí a jornada já foi longe demais, no entanto desconfio que um dos meus destinos mais prováveis era navegar sozinho, mas não solitário, no entanto a gente deve saber seguir as correntes e as histórias que elas nos contam.

Espero que a amiga entenda nesse post o amor que tenho por ela… Vou ter que mostrar, né? Ainda que seja meio frustrante num momento em que a pandemia ainda nos manterá fisicamente distantes por meses… Aliás, talvez nossa história seja para ser traçada assim: nos encontrando como cometas, acompanhando as artes um do outro. Ah! Tem isso que não disse, né? A amiga escreve e agora tem pintado e é fantástico ver o desenvolvimento das expressões dela.

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