O Segredo da Joaquim Silva

Por João Paulo Cuenca (e Roney Belhassof)

É noite e é a Lapa. Do outro lado da rua, a Nossa Senhora do Carmo da Lapa do Desterro nos guarda como um vigia gordo e cego. Capenga de uma torre, fachada opaca, a igreja por dentro é um bolo azul e dourado do século XVIII, com Cristo envidraçado à esquerda do altar, uma ostra gigantesca por trás do padre que, baixinho, deita o último sermão do dia: “não busquemos entre os mortos quem está vivo…” À sua frente, cocurutos grisalhos ajoelham-se no solo.

Onde estou, não sinto o cheiro de mármore frio ou o conforto da palavra. Aqui, no Largo Nelson Gonçalves, há o ganido da freada dos ônibus, o papo dos engravatados esperando o concerto na porta da Cecília Meireles. Mendigos aliviam-se nas raízes das palmeiras anãs que encobrem o mural pintado da escola de música. Ao longe, por trás dos Arcos, a luz esverdeada e indiferente dos arranha-céus de granito flutua sobre nós.

Resolvo subir o beco entre o Ernesto e a Cecília. Vejo aquele mural na parede com João do Rio, Villa-Lobos, Manuel Bandeira, Noel Rosa, Portinari e Di Cavalcanti. Gostaria de convidá-los prum chope ali na Flor de Coimbra. Procuro nos bolsos, giro o periscópio pelas outras paredes do beco e da Lapa – não os encontro.

Agora o desenho dos mortos dá espaço a graffitis, e, já na Joaquim Silva, frases como “Hexa Lapa”, “Brasil is beautiful” e, com destaque, “As noivinhas da Lapa são chapa quente”. Das janelas dos sobrados, chega o som abafado de atabaques e máquinas de escrever. Um carro de lixo passa pela rua, risca faixas rubras pelas janelas em círculo com sua luz de ambulância e desaparece, no passo lento de um rinoceronte de metal.

É quando uma nuvem de gafanhotos traz, pela escadaria da Manuel Carneiro, um senhor barbudo, sujo de graxa, erguendo trapos sobre o esqueleto pontudo. O velho me encara com olhos vidrados, a careca reluzindo o amarelo dos postes, e, com gestos de lorde britânico, aponta para a porta de uma pensão: “Ali dentro, você precisa ver!”. Sigo seus passos e me deparo com a estreita entrada de onde se derrama um sopro úmido com o odor pesado de incenso, água sanitária e madeira embolorada. Entro. Não sei por quê. Meus pensamentos martelam repetidamente alertando dos perigos e da insensatez de mergulhar no corredor estreito e mal iluminado que sai da metrópole violenta e leva sabe Deus aonde, mas um aperto na boca do estômago me leva como um cabo de guerra amarrado lá dentro puxado por algo muito mais forte que eu.

Os degraus da escada íngreme cedem e gemem sob meus passos, as paredes tomam uma coloração quente e rubra conforme subo em direção a uma luz avermelhada. Meus ouvidos são preenchidos por vozes sussurradas, encantos murmurados e o esvoaçar de asas. Passo por uma porta aberta onde uma mulher enrugada envolta em incenso se prepara para matar uma galinha. Subo mais e escuto vozes que sussurram em tom solene. Chego ao alto e descubro um amplo salão envolto em brumas de incenso e fumaça de lamparinas; no centro uma cena que demoro a compreender.

Vejo quatro homens de feições rudes ao redor de algo. Pombos, galinhas e até um porco andam pela sala enxotados por eles. Do outro lado, duas moças da vida – não deviam ter mais de 15 anos e seus olhos admiram perplexos o centro do círculo de onde vem uma respiração forte e ofegante.

Chego mais perto para ver, sinto as tábuas do piso se envergarem perigosamente, e meus pensamentos gritam que o prédio certamente está condenado para tentar me demover de continuar. Não adianta, pois do centro daquelas pessoas me alcança um suspiro de alívio e necessidade que me domina. Há uma mulher deitada no chão poeirento com a cabeça apoiada nos restos de um sofá, sapatos, bolsa e pertences espalhados ao redor. Uma grande poça escorre por entre suas pernas; um dos homens passa um pano molhado em sua testa.

Alguém me pergunta se também entrei ali por acaso, atraído por algo que não compreendo. Aceno que sim, vendo que todos chegaram àquela mulher jovem, negra e bela por puro acaso ou destino. Estávamos nos encontrando pela primeira vez.

Ajoelho ao lado da mulher, minha respiração para, algo bate oco dentro do meu peito. Ratos caminham na sanca ao redor da sala e um gato repousa na janela observando. A mãe toma minha mão e olha no fundo dos meus olhos, voltando a respirar compassadamente; abre as pernas, cerra os dentes e começa a forçar. No meio da poça uma das moças estende as mãos e logo escutamos um choro claro como o dia.

Quando percebo o que estou fazendo, já tenho o cordão umbilical entre os dentes e corto-o segurando a menina negra como a noite em meus braços antes de entregá-la à mãe, que a recusa, e entendo por que fui levado àquele lugar. Levanto, viro e desço pelas escadas sendo recebido aos poucos pelos ruídos e odores da civilização. Não olhei para trás e nunca mais voltei àquela rua e tenho certeza que não encontrarei novamente aquela porta.

Essa crônica foi escrita para o concurso Crônica do Leitor do Prosa & Verso do jornal O Globo. O início até “Ali dentro, você precisa ver!?. Sigo seus passos e…” foi escrito por João Paulo Cuenca e o restante foi completado por mim.

A versão enviada para o concurso tem 1.500 caracteres a menos para cumprir o regulamento. De certa forma é um alívio que a versão reduzida não tenha sido publicada! Está no meu Google Docs e lá ficará escondida! ;-)