– Tem certeza que você quer fazer isso? Acho que eles não vão gostar do que você tem a dizer…
– Me chamaram…
– Eu sei, mas conversaram com você antes?
O senhor balança a cabeça negativamente.
– Vovô…
– Sabe-se lá, menina… Muitas vezes as pessoas, sem saber, se agarram justamente a aquilo que mais temem pois o que precisam é ver o mundo com outros olhos.
– Receio que elas fiquem com mais medo e gente com medo fica violenta.
– Bem, foram eles que disseram que eu era um milagre, né?
Lá no meio da praça um homem anunciava o ilustre convidado. Sua voz em um íngreme crescente de êxtase: “A pedra veio do céu, meus amigos! Nada ficou vivo por quatro quilômetros e, quase no centro do impacto estava esse senhor sentado calmamente meditando. Essa é a primeira vez que ele vai dizer o que aconteceu! Ele é um milagre vivo! Uma prova da grandeza de Deus!”
A neta, de gorro de tricô vermelho que ela mesma fez, uma moça que aparentava menos de 30 anos de olhos brilhantes, atentos, carinhosos e visivelmente preocupados, ficou para trás olhando enquanto ele se dirigia ao palanque no centro da multidão.
– Então! O senhor certamente esteve mais perto do Deus único que qualquer um de nós aqui! Ele o manteve vivo no meio do fogo que veio do céu! O protegeu da trombeta dos anjos do apocalipse! Foi uma bênção! Um testemunho do poder divino! Aleluia!
O senhor, com uma expressão difícil de decifrar, a barba por fazer, a pele ao redor dos olhos traçada como o mapa de uma região vasta e repleta de ravinas secretas, lança um olhar ao redor. A neta percebe a mistura de desejo de ajudar aquelas pessoas e o pesar de não ter coisas fáceis a dizer.
– Eu não vi nada. Não senti nada. Somente ouvi um forte estrondo e meus sentidos desapareceram. quando voltei a mim o mundo era feito de poeira, água caia sobre mim vindo de uns canos rompidos no prédio ao lado da minha casa que agora não tinha teto. Minha pele ardia, meus ouvidos latejavam, mas eu estava calmo… Estranhamente calmo. Pensava apenas em esperar o que tivesse que acontecer em seguida e nada aconteceu por horas fora de mim. Só em minha mente coisas aconteciam.
Pigarreou… Os rostos se voltavam para ele na expectativa. Lá ao fundo o gorro vermelho se destacava e lhe dava conforto.
– Em minha mente nenhum pensamento metafísico se instalou. Eu observava a destruição estática ao meu redor, os sinais de vidas extintas e nem ao menos achei estranho que eu estivesse vivo. Estar vivo nem me parecia algo real naquele momento… Aliás nem agora. Sei apenas que estou consciente, que sou capaz de pensar em sentimentos, imagens, sons, ideias. E sou capaz de amar. Amo profundamente minha netinha, ultimo traço da minha família além de mim. Ela se preocupa comigo, mas algo raro e intenso aconteceu, não é meu direito deixar de falar sobre isso a quem me pergunta.
Dá uma olhada para as folhas das árvores que se acariciam na brisa da tarde que se converte em noite e continua…
– É inacreditável que eu esteja vivo e fisicamente bem, talvez algo mágico ou divino tenha acontecido lá… Talvez seja apenas uma dessas incríveis coincidências pois eu não vi nenhum Deus, não senti nada especial, não recebi nenhuma missão, não senti nenhum poder especial. No entanto acho que tenho uma obrigação.
Ele se levanta, dá alguns passos para a direita, olha para o chão, pega uma folha que acabara de cair da árvore, passa os dedos tortos sobre ela recolhendo a fuligem abundante proveniente dos carros e outros emissores poluentes. Sorri como quem olha para a criança logo depois da travessura e sabe que aquilo é coisa dos anos da imaturidade. Joga a folha no canteiro e recomeça a falar enquanto gira em torno do próprio corpo para que todos possam ver seu rosto na fraca luz do crepúsculo.
– Nunca soube por que nasci, por que atravessei oito décadas enquanto amigos mais inteligentes e melhores do que eu deixavam de existir. Nunca fui mau, também nunca fui bom. Tinha fé em algum Deus ou alguma coisa que cuidava do mundo quando a gente não estava lá. Agora entendo… e quero deixar bem claro que isso é o que eu penso e não o que qualquer outra pessoa devia pensar pois também nunca fui sábio e duvido que tenha mudado nos últimos dois dias… Agora entendo que simplesmente estou aqui. Se há algo maior ou divino no Universo ele não quer que eu saiba dele. Talvez até tenha decidido me deixar vivo, mas não faço ideia para quê, não recebi qualquer instrução. Sou velho e não terei mais filhos, não trabalharei mais e não mudarei mais a vida de ninguém… A não ser que esteja fazendo isso agora, mas se for assim a mensagem de Deus seria “esqueçam de mim, vivam suas vidas da melhor forma que puderem pois eu não me revelarei a vocês”.
Outro pigarro… A poeira a que ele foi exposto ainda incomodava um pouco seus pulmões apesar dos médicos terem garantido que era apenas uma irritação passageira.
Então ele repetiu…
– Lamento, mas se há um Deus querendo fazer de mim uma mensagem então seria essa “Esqueçam de mim, vivam suas vidas da melhor forma que puderem pois eu não me revelarei a vocês”.
Não havia mais nada a ser dito. Quando ele disse a frase pela primeira vez a neta já havia notado isso e estava agora bem diante dele esticando o braço e mexendo suavemente os dedinhos chamando-o.
O mundo parecia congelado, a noite caíra rapidamente e ainda não haviam acendido luzes sobre o palanque. Quando o fizeram os dois já estavam fora do alcance da visão, caminhando do outro lado da praça e conversando sobre os tricôs que a neta fazia.
Ninguém mais os viu e mais tarde diriam que eles tinham desaparecido magicamente, mas provavelmente foi apenas estupefação…