Imagem: Provável retrato da duquesa de Villar e sua irmã – 1594

Antônio observa o quadro das irmãs intrigado. Inclina a cabeça para a direita, depois para a esquerda, dá um ou dois passos atrás, estica o pescoço na direção da imagem.

– Ô Cara, que treco desconfortável! Elas seriam irmãs, né? Tá escrito ali na plaquinha. Eu pensava que as pessoas tinham mais moral na idade média com todo aquele lance de religião e tal. Século XVI é idade média, né? Ou já é feudalismo? A sociedade já estava perdendo a moral com o… o capitalismo? Tô confuso.

Jorge está ao lado, nariz colado no celular por causa dos muitos graus de miopia e do óculos que ele acabou de perder, está procurando um lugar onde fazer um novo com urgência.

– Nolite te bastardes carborundorum – Ele deixa escapar como quem faz uma soma complicada mentalmente.

– Hã? Bastardos o quê, Jorge?

– “Não permita que os bastardos te carbonizem” ou algo assim, é um tipo de trocadilho linguístico que está em O Conto da Aia, da Margaret Atwood. Uma distopia bem perturbadora por parecer muito possível quando vemos a memória se apagando desse jeito aí que você mostrou, Antônio. Ainda outro dia um grupo de radicais conseguiu fechar uma exposição com imagens como essa. É assim que começa.

– Opa! Mas pera lá! Posso estar incomodado com a imagem, mas deixa ela aí para as pessoa verem e pensarem, certo? Bem… Se bem que do meu desconforto para o meu silêncio ou até apoio para um lance como esse que você disse, Jorge, é um fiapo de cabelo. Inclusive, pensa bem, o que uma pessoa ignorante pode pensar vendo um quadro desse? Que as irmãs deviam ser lésbicas? Que era chique, sei lá!

Jorge entrega o celular para o Antônio fazendo um gesto para que ele resolva o problema dos óculos, esfrega os olhos cansados do esforço. Antônio senta ao seu lado, puxa a mochila para baixo das pernas e solta um suspiro longo e profundo. Nossa energia é quase inesgotável aos vinte e dois anos, mas a viagem dos dois já dura 11 dias parando apenas nos trens, ônibus e breves paradas para comer, algumas vezes em pé. Os dois tem sede de cultura e é a primeira viagem internacional deles.

– Não consigo ver nem que quadro você estava olhando, Antônio! Me resta viajar pelos meus próprios devaneios guiado pelos seus olhos! – E solta sua risada característica, uma mistura de desafio diante do perigo e esperança.

Antônio é mais realista e está preocupado com o amigo, felizmente parece que há três óticas que prometem entregar óculos de grau em menos de 24h na cidade.

Enquanto salva os endereços e as rotas para chegar nelas aproveitando o wi-fi do museu, ele reflete sobre como somos pequenos diante da história da humanidade. Ele não faz ideia do contexto histórico daquele quadro. Não sabe se é uma crítica ou um elogio, se era visto como algo belo ou se estava envolto em uma trama de desafio da moral religiosa… Não… Esse tipo de desafio só viria uns 300 anos mais tarde… Ou teria sido no Iluminismo umas poucas décadas depois? Eram décadas ou séculos depois? Aliás desde quando Jorge tinha memória melhor que a dele?

– Fala sério, Jorge, você tá tão perdido com esse quadro quanto eu, né?

– Hahahahaha! O cego seu eu, mas você pelo jeito é o bobo! Se eu estivesse vendo o quadro certamente estaria tão perturbado quanto você! Mil quinhentos e noventa e quatro, diz a placa, certo? Nem imagino por que eles pintavam mulheres nuas se tocando nessa época!

A risada sonora faz várias cabeças se virarem para os dois. Antônio dá uma cotovelada em Jorge e um “shush”, mas ri também segurando a boca para tentar se controlar.

Baixando o som da voz e se aproximando do Jorge ele conta, como se fosse um segredo proibido.

– Ao fundo, todo escuro, tem um quadro, acho que com uma mulher, essa tá toda vestida costurando ou tricotando, não sei diferenciar. Olha… Tem uma ótica a meia hora de caminhada daqui, vamos lá?

– Por Odin! Vamos logo! Estou me sentindo em uma bolha mágica desfocada do mundo! Amaldiçoado sei lá por quê! … Tô exagerando?

– Um pouco, mas não sou eu que estou quase cego com mais de metade da viagem à frente ainda, né? Mas fico pensando em como deveriam se sentir as mulheres em 1594… Acho que para isso serve a arte, para registrar de alguma forma o tempo, para nos provocar a estudar o que passou e tentar entender do ponto de vista deles e reprocessar do nosso próprio ponto. E você tem razão, aliás até mesmo a arte contemporânea, por mais perturbadora que seja, precisa ser colocada em seu contexto. A nossa vida antes e depois… aliás, nossa visão do mundo antes dessa viagem já era totalmente outra!

– Mas apenas porque tentamos olhar para a viagem com os olhos da viagem que são os olhos das pessoas daqui, das de ontem, das de amanhã… Mas tem horas que dá uma angústia, Antônio, uma sensação que a humanidade caminha em vagões fechados onde não cabe mais de vinte anos e, quando alguém vai parar em outro vagão sem querer vai ter violência.

Os dois atravessam a porta para fora do museu e são recebidos pelo vasto céu azul e pelo calor generoso do Sol, uma brisa sussurra entre as torres e curvas do museu que testemunha a passagem da civilização há séculos e persistirá ainda, quem sabe? por milênios e seguem mais leves para a ótica salvadora.