Atravessar a cidade entre um canto e o próximo dentro de um carro veloz, com vidros escuros, suave ar condicionado e um bom rádio é o sonho da maioria e pesadelo de alguns outros que caminham como sabujos de nariz colado nos detalhes das ruas, sempre com um tesouro escondido entre uma esquina e outra.

Vez por outra os olhos embaçam e a realidade se perde de vista por alguns minutos, é quando eles aproveitam para suas rápidas aparições.

Caminhava hoje escutando na memória a melodia das Chicas e, depois de um breve tremular do ar, enxerguei o velho amigo Gato andando mais à frente. Equilibrava-se no meio fio ignorando e sendo ignorado pelos motoristas que passavam absortos em suas próprias fantasias.

Não foi difícil alcançá-lo já que seguia bem lentamente pela sua corda-bamba improvisada.

– Olá Gato! O que você está fazendo? – Perguntei.

– Estou entre lá e cá, não consigo decidir se vou pela rua ou pela calçada… Todo mundo vai pela calçada, isso ã tão chato! Por outro lado as pessoas normais como eu não andam pelo meio da rua, seria loucura! – Ele responde sem tirar os olhos do meio fio e balançando os braços para manter o equilíbrio.

– Uma pessoa normal como você… Hehe! Não há nada de normal em você meu alucinado parceiro de noitadas iluminadas pela lua de absinto!

Ele se detém entre um passo e outro. Um dos pés, ou deveria dizer patas? suspenso no ar exibindo a grande e folgada bota de couro. Parando de balançar sua cabeça gira lentamente para mim voltando aquele seu olhar mais divertido para mim. Seus olhos grandes brilham, os bigodes balançam ao vento dos carros que passam em disparada.

– Você está divertido hoje! – Ele responde caindo em uma deliciosa gargalhada!

– Você pode disfarçar bem, mas não passa de outro gato como eu que não sabe se anda pela calçada ou venda os olhos e segue pelo meio das auto-estradas se deliciando com o vento dos veículos barulhentos! – conclui parado diante de mim com os dois pés bem fincados no chão, os braços displicentemente largados enquanto me olha de baixo como uma criança que, cheia de pena, revela um dos segredos do universo a um adulto bobo!

É… O que incomoda é que ele está certo…