– Godofredo! GODOFREDO!
– Opa! Opa! Sou eu!
Gabriela definitivamente não tem cara de Godofredo, mas a norma da cafeteria é essa: os clientes dão os nomes e eles chamam. Só não podem nomes políticos depois de um período politicamente conturbado no país em que verdadeiras hordas de pessoas acabaram se afastando da realidade culminando em verdadeiros atos de terror com a destruição de obras de arte e agressões até a pobres cavalinhos da polícia montada.
Daniel a espera na mesa olhando com um sorriso incompleto no rosto. Ele não está bem e amiga está se esforçando para distraí-lo e, bem, o café ali nem é grandes coisas, mas é um ambiente que lhes dá segurança, onde eles foram tantas vezes para falar da vida, do universo e… bem… aventuras e desventuras dos relacionamentos no século XXI.
– Gabi… Godofredo? Sério?
– Quê? Era o nome que eu queria dar para o meu peixe!
Por um momento Daniel realmente se esquece dos sonhos que vem tendo e agora estão vazando para as horas despertas quando arrepios lhe percorrem a espinha chegando na nuca e e ele pensa ouvir alguém quase dentro da sua cabeça dizendo coisas que o perturbam. Não que sejam ruins, pelo contrário, são coisas que ele poderia ter e parece que jamais terá e isso torna sua vida cada vez mais miserável.
As vozes parecem vir de alguém que passou, mas têm o tom exato do seu pai, de uma professora que respeitava, de um ex-namorado.
“Meu filho está fazendo doutorado em física no Japão”
“… vendeu uma história para o cinema por uma grana!”
Daniel se perguntava se devia seguir seus sonhos em vez de se satisfazer com a rotina medíocre como engenheiro do som, séries, uns bares com amigos e algumas incursões malucas com a Gabriela, que estava sempre fazendo algum esporte novo, da esgrima ao arremesso de facas passando por Krav Magá e sabe mais o quê.
Seu olhar está perdido no logotipo verde da rede de café, por que verde?
– Então, Gabi, qual é o seu próximo projeto? Você tá bem com a demissão?
– Você!
Ela sorri para ele como se não tivesse qualquer preocupação na vida, mas acabara de ser despedida de um tipo de emprego dos sonhos e que pagava muito bem.
Daniel fixa o olhar nela entre agradecido e admirando o astral da amiga enquanto espera explicações.
– Cara, é como eu te disse, eu já estava preparada para isso, tenho uns meses de reservas. Foi bem na hora, né? Fiquei preocupada com o que você contou. Os sonhos vazando.
Daniel finalmente explica como primeiro eram sonhos, depois começou a ouvir mensagens que pareciam falar do seu fracasso como pessoa em séries, na rua e agora até ao passar por vielas escuras parecia vir uma voz deslizando pelo chão frio, subindo por sua coluna e lhe dando arrepios. Ele sente vontade de seguir o chamado ainda que sejam passagens estreitas e assustadoras no centro da cidade, perto da região portuária.
Os olhos da Gabriela brilham com uma determinação que Daniel está sem energia para ter, mas costumava compartilhar.
– Vamos seguir, então!
– O quê? Seguir as vozes da minha esquizofrenia?
– E você tem histórico de esquizofrenia na família?
– Minha avó… Lorelay…
Gabriela não sabia e se retraiu um pouco. Eles são amigos ao que parece por eras e sabem muito um do outro, mas algumas coisas só agora estão vindo à tona até para Daniel. Ele tinha esquecido…
– Não Gabi! Pode segurar essa vibe aí! Você está certa! O que mais posso fazer? Ficar cada vez mais bolado? Só tenho receio dos perigos muito reais do mundo.
– Nhé! Eu estarei lá contigo! Vou levar a Hermione!
Hermione é a faca borboleta dela.
Daniel sabia muito bem onde ir, em que vielas ele sentia com mais frequência os miasmas que o assombravam. Tinha um ali perto, na região onde diziam que nos tempos coloniais uma bruxa consumia crianças.
Antes de se aventurar pela viela decidiram pedir dois chopes no bar Boiúna, que ficava quase em frente, e observar um pouco. Foi então que viram outras três pessoas que se detiveram por um instante, olharam para a viela, deram um passo atrás e pareceram travar algum conflito interno antes de mergulhar entre as paredes opressoras da viela. Tudo em um espaço de poucos minutos. A primeira poderia ser um acaso, a segunda coincidência, na terceira eles levantaram rapidamente, fizeram um pix apressado para o bar e se precipitaram sem muito cuidado e se entreolhando. “Que diabos era aquilo?”
Nas paredes da viela se estendiam grafites de cores fortes. Uma criatura meio gente, meio ave, outra que parece uma sereia, mas cuja cabeça era monstruosa e outras, mas eles mal prestavam atenção a isso.
Eles estavam bem perto da praça XV, entretanto o cheiro da maresia era intenso demais, quase lhes tirava o fôlego e a noite parecia estar caindo rápido demais ao redor deles, escutavam as ondas ecoando estranhamente próximas, até gotículas refrescavam seus rostos no outono quente do Rio de Janeiro. Aí já era demais. Pararam.
– Hei! Tem alguém aí? Vocês que entraram atraídos pela viela? – Foi Gabriela que teve a iniciativa. Daniel estava perplexo, mas com um ar aliviado. Fosse o que fosse não estava somente dentro dele.
A essa altura as trevas de uma noite profunda já os cercava, uma noite que não fazia sentido. Uma porta se abriu poucos metros adiante e era de lá que vinham os ruídos, as gotículas de mar, o miasma e… um berro.
Os dois não precisaram pensar sequer um segundo e já estavam atravessando a passagem estreita e se esforçando para adaptar os olhos ao novo ambiente.
Parecia um porão alagado, mas com ondas. A primeira coisa que viram foi o que pareciam cristas de ondas baixas em uma praia tranquila, mas havia também pilastras onde a água era mais agressiva. Era uma pessoa se debatendo cercada de formas que reluziam sob as águas turvas.
Enquanto corriam para socorrê-la perceberam as vozes. Vinham da água, tinham uma infinidade de tons e sussurravam promessas de grandeza, de glória na luta pelo país, de fama e sucesso. À beira da água viram diversas silhuetas ajoelhadas chorando. Daniel foi ajudá-las dizendo que também escutava, mas que tinham que sair dali JÁ. Gabriela passou ligeira por ele preparando sua faca e se atirando para salvar a terceira a despeito das formas cercando tanto ela quanto a pessoa. Era para ser apenas um porão alagado, mas Daniel percebe que Gabriela é obrigada a mergulhar e nadar com afinco até que some para as profundezas. Ele não a deixará lá de jeito nenhum e avança também pela água, mas antes que possa chegar à parte funda ela resurge próxima à pessoa que agora se agarra em desespero a um pilar. Em algum momento o lugar todo foi tomado pelos estrondos de uma tempestade violenta, mas ele escuta claramente a voz da Gabriela primeiro para a pessoa:
– Vá! Agora! Eu te dou cobertura! – E, olhando para ele com a expressão determinada – Tira eles daqui Dan!! Vai! Vai!
Daniel hesita. A cacofonia da tempestade, os ventos fortes que fazem a areia castigar suas pernas e as vozes asombrando suas ambições e ganâncias, derrubando os pilares do modo de vida civilizado e predatório sobre os quais construímos não apenas nossa civilização, mas também nossa cultura enquanto subjugávamos, apagávamos e pervertíamos a essência dos velhos caminhos. No entanto Gabriela conta com ele e tirando energias da amizade deles Daniel passa a sacudir cada uma das pessoas, mas sempre lançando um olhar para onde Gabriela se embate com sombras na água e voando ao seu redor.
A meio caminho entre as águas e as pessoas ele vê a soberba figura de um indígena e vê-lo já faz cair sobre ele, sobre todos os outros, o peso do julgamento. Um jovem indígena chora repetindo “Perdão Jurupari” como um mantra.
– Vamos! Levantem! Temos que sair daqui! Eu também ouço, mas se não sairmos daqui ninguém mais ouvirá! – Olhando para o altivo indígena ao redor do qual as águas se curvam submissas – Podemos ser melhores, nos dê uma chance!
Gabriela avançava a duras penas em direção à margem. A atenção de Daniel foi atraída novamente para a figura diante das águas.
Os olhos da entidade, no entanto, não transmitiam julgamento e sim pesar. Ele lamentava pelas frágeis figuras atraídas pelo canto que lhes era enviado com amor, mas se distorcia entre seus ouvidos e consciência. Daniel finalmente entendeu, mas os outros agora se arrastavam para as águas, menos o jovem indígena que olhava para Daniel. Ele também tinha percebido por conta própria e fazia grande esforço para recuar em direção à porta.
Daniel viu Gabriela afundar, sua mão sumindo por último no meio das águas tentando segurar alguma coisa para subir à tona, mas não há nada.
Não importa mais nada. Daniel se atira nas águas escuras e sobrenaturalmente profunda. Antes de mergulhar sente o roçar de penas em seus braços, mas fosse o que fosse, não consegue agarrá-lo.
Gabriela parece brilhar sob as águas escuras metros à frente, afundando enquanto se debate para tentar subir à tona. Daniel está decidido: se for esse o destino deles, então ambos terminarão ali. Ele não abandonará sua melhor amiga!
Repentinamente ela parece desistir de lutar contra o que a puxa. Em seus olhos ele ainda vê determinação, mas também a resignação de quem enfrenta um desafio muito maior que as suas forças e Daniel sente seus pulmões começarem a queimar enquanto investe todas as suas forças para chegar até ela, mas não deixa de notar as oscilações nas águas ao seu redor e já não são vozes que ele escuta, mas dedos frios que atravessam seu coração e cérebro. O que um homenzinho insignificante pode fazer contra séculos de homenzinhos insignificantes construindo atabalhoadamente cordilheiras de cinzas e veneno?
A visão de Daniel começa a falhar, tudo vai se cobrindo de trevas exceto por um último delírio, um facho que luz que o cega vindo das profundezas e sua consciência se apaga.
– Dan… Dan… Por favor… Você precisa acordar. Temos pouco tempo, amigo!
Ele está sendo arrastado pelo chão coberto de poeira do porão. Agora sem qualquer sinal de água. Aos poucos a consciência volta e ele percebe o indígena e Gabirela arrastando-o e olhando para trás onde um retângulo luminoso parece uma esperança distante. É a porta. Mais à frente ele vê sombras de diversas pessoas e sabe que são os outros que foram atraídos para lá, homens e mulheres, mas seus corpos emanam uma fumaça rubra e seus olhos são estranhamente visíveis no meio das sombras. Eles não conseguiram…
O indígena o ajuda a levantar enquanto Gabriela se coloca entre eles e as sombras, suas roupas com vários rasgos.
– Força, amigo, pode me chamar de Miguel, vamos, falta pouco!
– A Gabi! Vem Gabi!
Ela está andando rapidamente de costas para eles e de frente para as figuras que avançam ameaçadoras.
Finalmente eles alcançam a porta e ela os empurra com força para fora caindo junto com eles na estreita viela onde os grafites os esperam, alertas para quem passa por ali. Os três recuam sem perder de vista a porta e não se sentem seguros até sair novamente para a rua movimentada do bar Boiúna. Eles não precisam falar nada agora. Os três sabem que os séculos de cultura que constroem suas visões de mundo e que podem seduzir até os filhos da Terra não desaparecem da noite para o dia, que talvez as vozes os acompanhem para sempre e até que podem ser atraídos para o julgamento por suas próprias consciências novamente e que a jornada será longa.
Miguel os cumprimenta com o olhar e um gesto, mas parte sem mais uma palavra. Se for para seus caminhos se cruzarem novamente assim será.
As pessoas ao redor mal notam suas roupas molhadas ou rasgadas. Seguem alheias pelas ruas.
– Isso foi intenso, hein, Dan? Foi real, cara, vou ficar com cicatrizes na perna que não me deixarão esquecer… Vamos para casa, vou dormir lá uns dias. Você está bem?
– Estou assombrado, mas… estranhamente… acho que nunca estive tão bem. Vai demorar, mas agora sei que caminho seguir!
Conto escrito para um concurso. Mais curto do que eu gostaria por limitações das regras. Acho que poderia ser melhor com mais umas duas páginas. Talvez seja verdade, afinal não foi selecionado hehehehe!