O meio-dia entra pela janela onde Jorge não teve dinheiro para colocar cortinas e o desperta cedo demais, depois de apenas umas cinco horas de sono.

Muitas vezes uma noite de sono é um intervalo tão extenso quanto uma morte e uma reencarnação, tudo que aconteceu no dia anterior repentinamente se converte em memórias distantes que bem poderiam ser de outras pessoas, coisas que nos contaram e, por confusão da memória, nos lembramos como se tivessem ocorrido conosco. Ainda assim Jorge despertou assombrado por um aperto no coração, uma sensação esquisita e perturbadora, como se o chão de tacos envelhecidos onde ele pisava pudesse ruir a qualquer momento.

O que mais incomodava não era a alucinação que ele teve no dia anterior. O sono faz coisas muito estranhas e ultimamente ele dorme muito pouco dividindo-se entre três trabalhos, dois como enfermeiro em hospitais e mais um bico como digitador de monografias para os formandos em medicina. O que mais o perturbava era aquele olhar imaginário, a tranquilidade e a segurança daquela menina imaginária diante da morte!

Era injusto que justamente aquela velha senhora, a pessoa que menos sofria naquela UTI fosse agraciada com o descanso da morte. Ele a tinha visto chegar na UTI, alegre e cheia de esperança apesar do estado da sua saúde e o seu sorriso se confundia em sua memória com a expressão plácida quando a menina a tomou pela mão logo depois de sua morte…

Afastando o mal estar destes sentimentos Jorge se atirou sob um banho frio, preparou dois pães com mortadela e um copo de leite com chocolate e decidiu sair do seu sala-e-quarto na Glória (bem ao lado do hospital) e dar uma volta, talvez encontrar com a Elisa para bater um papo e afastar os pesadelos da noite anterior.

Sentado em uma pedra no Aterro do Flamengo, bebendo um coco, ligou para a amiga.

– Elisa! É muito cedo?

– Ãh? Que horas são Jorge? ‘Pera aí… Ich! Uma da tarde? Dormi demais! Que dia é hoje? Sexta? Sábado?

– Calma! Você não trabalha hoje! É sábado! Hehehe! Desculpe te acordar, faz um sol lindo e achei que você gostaria de beber um coco e bater papo!

– Ah… Tudo bem! Mas estou toda amarrotada agora, que tal a gente almoçar juntos lá pelas três da tarde?

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