– Eu sou mau! Sou o Zé Cão! Quem manda aqui na área sou eu e se não gostar encomendo o malandro! Tá entendendo?

Enquanto fala ele cospe e arranha as palavras enchendo-as de ódio e desprezo. Os olhos amarelados fixos no homem encurralado no beco, mergulhado nas sombras, mas estranhamente calmo ao responder…

– Ah… E quem te fez mal, você mesmo? Um dia você acordou e disse “eu sou mal” ou você nasceu assim?

Sem entender o abuso de sua vítima o fascínora avança um passo puxando uma longa faca enferrujada. Ao falar entre o ódio e o orgulho se esconde um tênue fiapo de dúvida.

– Isso aí! Sou filho do demo! Minha mãe se deitava com ele nos cantos escuros lá do barraco! Deitava e berrava que nem uma bezerra!

A vítima se afasta das sombras aproximando-se dele. Zé Cão é um homem grande, mas o sujeito diante dele é enorme ou cresce espalhando-se pelas sombras como a fumaça negra de pneus queimados.

– No começo você não passava de um menino que chorava nos seus sonhos e acordava sem abrir os olhos torcendo para continuar no pesadelo pois lá ao menos você reagia…

– O quê? Quem te falou estas coisas malandro? Tá se fazendo de espertinho? Quer sentir o gosto do ferro atravessando tua goela? Olha aqui!

Josinaldo Antônio da Silva, o Zé Cão, não tem medo de tamanho, mas os olhos do homem diante dele são como o jato de água das mangueiras da prisão, só que é o seu espírito que eles atingem. As memórias de uma infância distante, esquecida na tentativa de sobreviver desabam sobre ele como o zumbido de balas no meio do tiroteio. Zé está pronto para morrer, até deseja morrer de forma horrível para nunca ser esquecido e sempre ser temido, mas não está pronto para ele mesmo.

– Acorde… Acorde… – A voz do homem parece vir de todos os lados, Josinaldo golpeia a esmo com a faca…

Acorda dentro do seu barraco, encharcado em suor… Senta e chora…

Os textos neste blog são exercícios literários e não representam necessariamente as crenças ou convicções do autor