A rua mergulha na noite escura e sinuosa como o corpo esguio de uma serpente refletindo a luz pálida e avermelhada que escoa leitosa dos postes.

É cedo e a lua ainda trilha seu caminho para lançar uma fraca luminescência nas nuvens acinzentadas, mas os carros já descem reverberando rara e timidamente seus motores.

De um lado da rua o longo muro coberto de grafites de uma instituição “depositária” de gente pobre, moradores de rua. O muro é o esconderijo de duas ou três silhuetas que seguem até o ponto de ônibus. Encolhidas sob o sopro gelado do inverno.

Do outro lado da rua um homem caminha ao encontro das duas únicas pessoas além dele mesmo naquela via esquecida.

Seu olhar cruza brevemente o da moça jovem, estudante de uma faculdade próxima, com certeza. É o olhar atento e preocupado de quem se acostumou a reconhecer as feras urbanas e teme pelo jovem negro e mal vestido que vem se aproximando dela por trás carregando caixas de papelão em ambas as mãos.

O homem solitário cruza com os dois no momento que o rapaz negro, talvez morador de rua. está prestes a cruzar com a moça.

Três passos e as duas figuras fogem do seu raio de visão.

Ele para e gira.

De longe talvez alguém veja a coreografia executada pelos três: a moça que se detém fingindo olhar o trânsito para atravessar a rua no momento exato que o seu perseguidor vai encontrá-la; o homem que parou e se virou para ver se a moça está em perigo e decidir se deve intervir e o jovem negro que segue seu caminho aparentemente sem notar nada além das suas memórias do dia ou o que a noite lhe reserva mais adiante.