A chuva lhe dá beliscões. As gotas tão pesadas e geladas que parecem agulhas. Sua pele formiga. E ele gosta!

Anda descalço no chão lamacento e se arrepia quando bate o vento jogando seus cabelos para trás e castigando seu rosto com as lâminas geladas da chuva.

É um mundo árido, já não resta muita vida nele e o que ainda vaga pela Terra tem pouco de humano. A pessimista, apocalíptica e depressiva civilização do início do século XXI se esconde atrás de muros ou nas profundezas de cavernas. As cidades foram deixadas a outros.

Vírus, castigo de Deus, mutações genéticas causadas pelos produtos químicos ostensivamente despejados pela arrogante civilização humana… cada um tinha sua explicação. Para ele era apenas o medo e a solidão.

Antes do fim da primeira metade do século o canibalismo se transformou em uma epidemia. No início apenas alguns grupos marginalizados, doentes sociais diziam. Somente depois notou-se que era algo totalmente diferente, praticamente uma nova raça.

Incapazes de sentir como os outros humanos. Criaturas desensibilizadas tanto mentalmente quanto fisicamente, a ponto de continuar avançando depois de terem os braços ou mesmo as pernas quebradas. Avançavam insensíveis até cravar os dentes em sua caça: outros humanos.

Zumbis. Depois que algum desesperado gritou pela primeira vez o pânico se espalhou e foi apenas questão de tempo para que o mundo se dividisse em dois: Zumbis e alimento.

Ele no entanto caminhava indiferente a isso. Ao longe alguns zumbis se arrastavam famintos, mas ele sabia evitá-los. Tinha um encontro com duas amigas.

Eram amigas de infância, brincavam juntos no mesmo parque, iam aos mesmos lugares nos tempos de faculdade – tempos que foram interrompidos pela catástrofe – e falavam de amores e desamores até que um dia elas apareceram com aquele olhar fixo, vazio de sentimentos: tinha acontecido a elas.

As mãos lambuzadas de sangue e lambiam os lábios limpando as últimas gotas antes de passar a chupar o resto dos dedos.

Caminharam até ele, mas ele não se moveu. Lá no fundo dos olhos endurecidos ele ainda via o brilho da amizade pura.

Sem medo ofereceu a própria mão para que elas mordessem. Elas não morderam.

Naquela primeira tarde os três ficaram sentados na varanda da casa da praia observando o por do sol e os zumbis que caçavam pessoas perdidas na areia.

Foi ali que ele fez a promessa a elas, que voltaria todo equinócio de outono para vê-las, que buscaria uma cura. Os anos se passaram sem sucesso, mas ele nunca deixou de se encontrar com elas e nunca se incomodou que se vestissem de farrapos e tivessem o corpo marcado de sangue seco, eram suas amigas!