… bem vestido, você sabe. Roupas bem passadas, sóbrias e bem ajustadas sobre o corpo como se fossem um uniforme. Um colete preto sobre uma camisa social branca, uma calça preta, sapatos também pretos e um discreto cinto, preto, claro, com fivela prateada. O homem bem vestido estava na calçada diante de uma dessas igrejas protestantes e distribuía papeizinhos. Um evangelizador.
– Senhor, uma mensagem para o senhor! – E oferecia um sorriso realmente sincero e amigável.
– Lamento, religiões e eu não nos damos bem.
O pedestre era um sujeito baixinho, o cabelo parecia um tipo de chapéu e trazia um guarda-chuva a tiracolo. Sua voz carregada de um sotaque indefinido era discretamente sarcástica.
Ele segue alguns passos antes de se deter, virar nos calcanhares e olhar para o religioso. Fala alto para ser ouvido através do barulho da rua.
– Ó, não é que não acredite em nada, mas religiões… Ah! Esquece.
– Tem certeza que não quer a mensagem senhor? Acho que mal não fará! Talvez chame sua atenção para outra realidade.
O homem pega a mensagem. Ele atravessa os três metros entre ele e o evangelizador com uma agilidade incrível e a segura entre os dedos gorduchos antes que o evangelizador perceba seus movimentos.
– A vontade divina… é uma bonita frase meu jovem, mas não é essa a realidade.
– Talvez não senhor, mas nós religiosos somos buscadores da verdade e essa é a que eu vejo e que aquece meu coração.
– Se o seu coração sente frio não precisa de realidade e sim de ilusão, não acha?
O pedestre baixinho está apoiado sobre o guarda-chuva fincado no chão bem diante do religioso.
– O conforto que procuro em Deus é antes para ter forças a fim de enfrentar a realidade, senhor!
O tom grave do olhar harmoniza perfeitamente com as vestes sóbrias.
– Ah! Mas realidade é tudo do que religiões não tratam, meu caro. Olhe ao redor e tudo que verá é uma fantasia criada por nós, e se há um Deus e se ele nos deu algo foi o livre arbítrio para criar o mundo e a realidade que desejássemos.
O baixinho tinha o olhar distante enquanto olhava ao redor regendo o mundo à volta como um maestro que tenta extrair dele alguma expressão.
– Esses edifícios, países, leis, sociedades, políticas. Religiões. Tudo isso é criação de vocês, humanos. Se você deseja a realidade busque as palavras puras de Deus. Se ele existe suas leis estão escritas nos movimentos das estrelas, no crescimento das florestas e no ciclo da vida dos animais que não mergulharam nesta ilusão que é a sociedade humana. Mais do que isso não lhe direi pois a realidade não é uma só e só pode ser conquistada, jamais ensinada. Mas…Você quer mesmo o desconforto dela ou procura o conforto dos braços de um pai?
Ele sorri um sorriso honesto, dá um tapinha no ombro do religioso e num passo alcança a esquina vinte metros adiante.
Antes de virar a esquina lança um último olhar e passa a mão pelos cabelos como quem faz uma mesura com seu chapéu e, por uma fração de segundo, o guarda-chuva parece um belo florete.
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