O homem sem camisa apesar do frio espera entre os portais da porta aberta. O corredor frio e cinza o encara de volta com um suave hálito gelado. Ruídos fluem até ele junto com o vento. Vozes distantes, portas sendo abertas ou fechadas, uma risada de criança, um latido de cachorro e o ruído monótono das máquinas do elevador avisando que o entregador já deve estar subindo.

O homem deixa os olhos perdidos num ponto na parede e os pensamentos entregues a devaneios. Já pensou se o entregador é alguém conhecido? Raios de cidades grandes onde nunca encontramos com a mesma pessoa duas vezes até encontrar num só dia com todos os rostos perdidos do passado.

Como demora esse entregador…

Justo quando ele nota a demora a porta do elevador de serviço se abre depois de uma curva no corredor. Segundos depois surge o entregador. Na verdade primeiro aparece o saco plástico branco com as batatas recheadas e depois o entregador.

O homem sem camisa e calça de moletom dá um salto e uma máscara de terror toma conta do seu rosto no exato momento que entregador vira a esquina para o corredor principal.

Enquanto se esconde atrás da porta pensando no que fazer se pergunta como é possível que justo aquele monstro do passado ressurja assim naquele momento.

O pavor maior era ter esquecido totalmente aquele episódio ocorrido pouco mais de 20 anos antes. Ao ver o perfil do entregador todas as memórias retornaram, como se uma outra encarnação rasgasse suas entranhas matando o homem que era e transformando-o na criatura desprezível que fora no passado.

– Senhor?

O entregador já o tinha visto! Não poderia mais recuar e o passado inevitável o engoliria para sempre.

Mantendo a cabeça atrás da porta ele disse com uma voz gutural, propositadamente distorcida.

– Tem alguma coisa prendendo a porta… Pode deixar ai fora… Trouxe troco para cinquenta?

– Ãhmm? Não senhor… Não me disseram nada.

– Merda! – esqueceu de disfarçar a voz pigarreou e seguiu – Já é a segunda vez. Toma, fica com o troco.

– Mas senhor, é uma gorjeta de quase trinta Reais. Errr… Tudo bem com o senhor?

Teria o entregador reconhecido sua voz ou simplesmente se preocupava com o homem que se contorcia atrás de uma grande porta escura e esticando um braço para fora com uma nota de 50 entre os dedos.

Passaram-se longos segundos sem que o entregador tivesse uma resposta além da mão que sacudia freneticamente a nota. Do outro lado da porta o homem sem camisa e calça de moletom suava frio, achava que ia vomitar ou ter uma diarréia, mas antes disso o entregador finalmente pegou a nota, agradeceu e seus passos mostraram que ele seguia pelo corredor.

O homem fechou a porta sem pegar a comida que ficou ao lado do tapete. Passou meia hora, talvez mais, escorrendo suor. Chegou a esquecer da comida. Só horas depois ele voltaria a abrir a porta e pegar as batatas recheadas frias. Quando abriu a porta esperava não encontrá-las lá, esperava que tudo não tivesse passado de uma alucinação. Era melhor estar louco do que se lembrar daquele passado e se estivesse louco poderia dizer que tudo não passava de uma fantasia esquizofrênica. Não era e seu pesadelo apenas começara…