Boteco pé-sujo que se preze espalha aquele cheiro de salgado gorduroso e de linguiça meio passada. A calçada em frente é estreita e encardida depois de décadas recebendo o chorinho para os santos que todo bebedor contumaz deixa cair por superstição ou por embriaguez mesmo. Todo pé-sujo ostenta orgulhoso os ladrilhos gastos importados de Portugal. Exatamente como aquele ali na esquina, perto de um complexo de modernas salas de cinema e um grande shopping center. Boteco sempre acha um jeito de se esgueirar pelas grandes metrópoles metidas a século XXI.

Tudo isso, e as figuras ímpares e excêntricas, fazem dos botecos pé-sujo verdadeiros paradoxos.

É num destes que dois homens se escoram sobre o balcão de vidro onde ficam os ovos cozidos e torresmos. Bebem a loura da despedida antes de ir para casa. A noite cai e lufadas de vento enrolam jornais e sacos plásticos na sarjeta.

— Opa! Olha lá, rapaz, quem vem!

Ele aponta para a esquina com a mão curtida e com dedos nodosos. Logo se volta novamente para o companheiro de copo e continua.

— O coronel! Faz tempo que o velho danado não aparecia aqui. É uma figura, o cara, tu nem sabe! Guarda de tudo em casa, pelo menos é o que dizem, não sei de ninguém que já tenha visto onde ele mora.

— Hei, garoto! — Coronel de verdade ou não, a voz rouca e arranhada é forte e até intimidadora. — Se não estiver bem gelada nem me faça perder tempo, hein? Dá logo uma garrafa!

— E ai, coronel? Vai guardar a garrafa para levar para casa? — O homem dos dedos nodosos dá uma cutucada no ombro do coronel.

— Tá pensando que não tinha te visto João? Primeiro as loiras, depois a prosa! — O sorriso de dentes amarelos no rosto que já passa dos setenta é um misto de cordialidade e autoridade.

— Tava sumido Coronel! O que tem feito?

— Viajei.

— Ô Coronel! Como assim, viajou e mais nada? Conta ai para a gente!

Visto de longe o boteco é uma luz fraca sob a marquise e lá dentro só se vê os três homens no balcão além das pessoas que passam pela calçada pensando em seus próprios problemas e provavelmente nem sabem que ali há um bar. Um velho certamente de classe média, apesar das roupas cansadas, e outros dois que bem poderiam ser peões de obra bebendo o chope da sexta antes de enfrentar três horas de ônibus até a distante periferia da cidade.

— Hehehehe! — A risada superior e gutural do coronel vem seguida de um acesso de tosse cuidadosamente cultivado ao longo de décadas de tabagismo convicto.

— Coronel — pela primeira vez o terceiro homem, curioso talvez, abre a boca — quer dizer que o senhor é o rei das traquitanas, né?

O velho olha meio irritado para o amigo de dedos nodosos reprovando-o pela fofoca.

— Rapaz — começa ele atravessando o jovem com os olhos aquilinos — só um imbecil paga por alguma coisa só para jogá-la fora depois! Se compro uma pizza e me entregam junto uma caixa então ela é minha! Paguei, ora diabos! E que não venham se meter com as minhas traquitanas que leva logo chumbo!

Os dedos nodosos se colocam entre os dois apaziguando os ânimos; carregam um copo cheio de chope gelado.