Tem uns anos que escrevi esse conto e publiquei apenas na Amazon. Essa é a sinopse:
A silhueta da Márcia diante do velho carro abarrotado de malas e mal iluminado na madrugada que está quase terminando parece uma cena de circo mambembe, mas é uma cena triste. Ela tem que deixar sua casa às pressas levando sua filha de menos de 11 anos. Conto disponível na Amazon.

A Vivi, Rapha, Cláudia e tantos amigos que são inspirações de vida

Imagem: Citröen 2CV por Miwok – Creative Commons

É uma cena estranha. A rua pobre e quase escura, um carro abarrotado de malas amarradas ao teto, lembrando os carros de palhaços de circos mambembe. A silhueta escura de Márcia parece pequena diante daquela montanha.

“Será que exagerei?” — Márcia deixou apenas um espaço estreito no banco de trás para Carol, sua filha de quase 11 anos. Não dá mais tempo. Ela precisa acordar a filha.

Márcia se ajoelha ao lado da cama.

— Carol, filha? Acorda, tá? A gente tem… tem que ir atrás de um tesouro! Um sapo mágico me acordou e me contou onde está a primeira pista pra achar um lindo tesouro! Vamos, amor. Se veste, pega seu brinquedo preferido, tá? A gente… bem, a gente pode demorar a voltar.

Carolina olha para ela ainda com os olhinhos pequenos, entendendo as palavras, mas não o que significam.

— Mãe! Hoje é sábado! Tá escuro!

Os olhos da mãe brilham com amor e sua voz é suave, mas a filha percebe um traço de medo. Abraça forte a mãe, tentando parecer o mais animada possível e sussurrando em seu ouvido:

— Vamos procurar o tesouro do senhor Sapo, mãe!

Em menos de uma hora o sol nasceria, e elas já teriam que estar longe dali. Márcia não podia arriscar. Ela olha durante alguns segundos para a pequena casa encravada no meio de muitas outras igualmente pequenas, com muros cinza e envelhecidos que se confundem com as paredes castigadas pela poluição urbana, mas sempre cheia de amigos. A ponte que cruza o rio para outra cidade passa praticamente sobre a casa, cobrindo-a de umidade. Não há tempo.

Carolina está saindo pela porta com botas rosa de borracha, descabelada, carregando um kit de ferramentas que é seu brinquedo preferido e vestindo um macacão gasto que foi da mãe, e ela tem que dobrar as mangas e a barra da calça. Ela fica parada perto do carro, vendo as malas sendo atiradas ao chão e a mãe suando com o esforço, mas sorrindo para ela.

— A gente tem coisas demais, né, filha? Quando acharmos o tesouro, não vamos precisar de tantas coisas, por isso vou deixar uma parte aqui, tá bom? Quer levar alguma coisa além do kit de ferramentas? Ainda temos algum tempo.

Mas não tinham. Ela se assusta quando um carro passa pela ponte. Não há tempo. Ela estende a mão para a pequena Carolina, dizendo:

— Vamos lá! Próxima parada: início do arco-íris!

O celular treme no seu colo. “Você já saiu? Corre, Márcia! Corre!”

Não precisava avisar: o carro já está em movimento. O aparelho de som toca músicas dos anos 80 que nem ela nem a pequena Carol viveram, mas adoram.

— O que é, o que é, mamãe? Que corre em pé e cai deitado?

As risadas infantis, agudas e desafinadas, ecoam pelo carro. Márcia sabe. No fundo, ela sabe que a filha percebe o que está acontecendo.

— Carol! Tem certeza que não é o contrário?

— Claro, né, mãe! Não é chuva, não! E tem mais! Não vou dizer até você adivinhar!

Não há trânsito; elas já estão longe, muito além da ponte, quando o sol começa a lançar as sombras esticadas das árvores sobre os pastos como se fossem gigantes seguindo o carro silenciosamente. Lágrimas escorrem pelas bochechas rosadas de Márcia, quase tão menina quanto a filha, tentando evitar que o véu escuro do seu mundo cerque o que ela tem de mais importante: aquela pessoinha que dorme espremida no banco de trás, abraçada nos joelhos, com a cabeça levemente apoiada na ponta de uma colcha.

“Tô bem! Longe. Bem longe dele” — Send. Ela prefere não dizer para onde foi. Não sabe se vão conseguir impedir que ele pegue o celular.

O vento frio dos primeiros dias do inverno tenta circular pelo carro, mas encontra obstáculos: roupas, livros, panelas e até uma mesa de centro que ela conseguiu encaixar dentro do pequeno e velho veículo.

Cinco horas e mais de 400km se passam até que Márcia se sinta segura e entre em uma grande parada de estrada, com restaurante, mercado e posto de gasolina. Só então ela percebe que seguiu sem rumo. Não sabe onde está e muito menos para onde está indo.

No celular, vê os avisos dos amigos falando que ele está procurando pelas duas em toda parte. Seu coração fica leve, pois ninguém imaginou que ela, a certinha, faria uma jornada sem destino.

A cidade deixada para trás parece cinza em sua memória, permanentemente escura. Mais 300km e ela chegará a uma pequena instância praiana, lhe informam no balcão do mercado enquanto Carolina caminha entre as prateleiras pegando frutas; ela adora frutas.

— Olha, tia! — Carol passa a chamá-la de tia como se fosse brincadeira, mas ela sabe que é parte do medo; do esforço para não deixar pistas.

E ela vem com uma caixa onde se lê “sementes surpresa, novas raízes para sua vida”.

Márcia se ajoelha à sua frente, acariciando as bochechas coradas enfeitadas pelo par de olhinhos brilhantes e diz para levarem, pois logo vão achar um solo bom para plantá-las.

Do lado de fora, famílias fazem piquenique perto de uma cachoeira que forma um túnel por onde as pessoas podem passear. Parece que nessas bandas toda parada tem algum tipo de atração como essa. As duas percebem finalmente que estão totalmente seguras e ninguém as achará.

Elas caminham sob a cachoeira, observando o dia claro e cheio de gente feliz.

Ficam ali durante um bom tempo, de mãos dadas; não há pressa para seguir caminho. O aperto quente dos dedos entrelaçados deixa claro para as duas que nunca mais haverá pressa, nunca mais haverá medo.

Depois que a gente vira as costas para o passado e segue para longe, tudo que antes parecia impossível se torna tão fácil. Por que elas não partiram antes?

Bem… É claro que tem a família e os amigos que são mais preciosos que a própria família, e eles terão que ficar para trás para o próprio bem deles. Se os amigos não souberem de nada, ele não poderá coagi-los.

Marcia decide pegar o celular, ali mesmo sob a cachoeira, e mandar uma última mensagem para os principais amigos: “Estamos bem, muito bem. Decidimos não voltar mais.”

Carolina vira o rosto curiosa, e Márcia mostra o que escreveu. As duas se abraçam, entre tristes e aliviadas. É difícil deixar os amigos, mas agora elas estão livres.

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