Advertência: esse post está relacionado à pandemia da covid-19. Se esse assunto te causa ansiedade recomendo não ler e talvez visitar a página anti-ansiedade sobre a covid-19 que mantenho para que possamos nos informar sobre o essencial.

A chuva, ainda que suave para final de março no Rio de Janeiro, despeja grandes gotas de água no asfalto escuro e rachado que recebe todo final de tarde grupos de jovens da vizinhança que tocam bolas uns para os outros, bolas e os miasmas da covid-19 que mata quase quatro mil pessoas todo dia.

Chego na varanda coberta para olhar a chuva e apreciar meu pesar na segurança do privilégio – que devia ser direito universal – de permanecer isolado no alto da minha torre de concreto.

Lá embaixo uma escadaria que sobe para a esquerda levando a uma rua de casas iluminadas pelas luzes amareladas da iluminação urbana. Há muito o Sol partiu, mas é como se houvesse um pouco dele nos reflexos dourados.

Meus olhos vagueiam em busca de um futuro onde as ruas não estão cobertas pelo risco da morte gorgolejante de pulmões preenchidos de fluidos e de hostes de pensamento e alma embotada pelo medo, ignorância ou descaso até pela própria vida.

E pensar que comecei a escrever as memórias desse dia para buscar um pouco de paz resgatando uma cena de amor… de triste amor percebo agora.

Pois meus olhos vagueiam pela escada até encontrar o asfalto circular na rua sem saída à direita onde quase duas dezenas de jovens moças e rapazes costumam trocar embaixadinhas.

Com a chuva intensa eles não estão lá, mas me surpreendo ao ver, encharcados, um pai e uma filha, com não mais de 8 anos, jogando uma bola um para o outro.

A única história que sei deles é a que se forma nos meus devaneios, dos dias sem fim, afinal já estamos há quase 400 sob a pressão da necessidade de nos isolarmos entre as nossas paredes e sem qualquer sinal de amparo ou perspectiva de final da ameaça que tantos preferem fingir que não existe até que morram ou alguém muito importante para eles adentre o inferno da covid-19 severa.

O que sei dos dois são os dias infindáveis da menina olhando pela janela sozinha sonhando que um dia a tempestade de medo termine. Sei do pai olhando para a dor da filha que aceita o isolamento para proteger os pais, mais vulneráveis, aceita o isolamento por amor.

Sou o pai naquele momento, naquela fugaz oportunidade que se abre por um instante entre a primeira e a última gota de chuva que nos dá a ilusão de limpeza da atmosfera e, mais importante, nos entrega uma rua vazia, sem viva alma se aventurando sob a intensidade das lágrimas que despencam dos céus.

A água chapiscando sob os passos animados da menina, a aura de umidade ao redor da boa que voa pelo espaço de conexão entre ela e o pai e até o brilho dos seus corpos: tudo dourado e luminoso como o mercúrio que incandesce nos postes acima deles trazendo um pouco do Sol para o momento que se limita entre a primeira e a última gota de chuva.

É injusto que eles tenham que passar por isso, mas rogo ao espírito da razão, que nos trouxe até aqui através de eras dominadas pelos demônios da ignorância que nos mergulham nos fossos do medo e do ódio, que o devaneio seja real, que eles estejam encontrando e cultivando a fagulha de amor que nos liga, nos faz nos importarmos com a vida dos próximos assim como dos distantes e que sobrevivam não só fisicamente, mas também espiritualmente e façam parte da construção de uma nova humanidade que saiba reconhecer e afastar os demônios, os reais demônios que se disfarçam entre palavras e vestes sagradas do passado.

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