Ele não cheira bem. Suas roupas estão puídas. Os tênis gastos deixam
exposto um ou dois dedos encardidos. Deve ter uns trinta, talvez trinta
e dois anos. É uma figura inesperada em uma biblioteca.

– Vivi, tô indo no banheiro, tá?

Naquele horário há duas bibliotecárias na biblioteca regional. É uma biblioteca pública.

Quando a Vivi se dá conta já não tem como fugir do visitante incômodo.

– Oi moça. Tô procurando livros que descrevam a vida no início do século passado, o XX, você sabe, né?

Estranhas figuras povoam nossas ruas escondendo sob trapos e maus
costumes formas suaves e cativantes. Este homem era assim. Sua voz era
tranquila, os olhos firmes, mas assim mesmo causava certa repulsa.

A Vivi sabia exatamente o que lhe dar e trouxe um volume de contos de Machado de Assis, um Guimarães Rosa e até um Jorge Amado.

Essa é a função da bibliotecária: sintetizar as necessidades dos que recorrem a elas em busca de informação.

Mais tarde o homem deixou a biblioteca satisfeito. Foi caminhando da Glória até o cemitério em Botafogo.

Passou por um campinho de futebol onde meninas e meninos humildes,
já lá com seus 16 anos, jogavam futebol. Poucos passos adiante escutou
a voz saindo do fundo da terra “Senhores passageiros, os vagões com tarja
rosa são…” para as pombinhas se esconderem, pensa o homem rindo-se dos
próprios pensamentos.

Nas bancas por onde ele passa jornais anunciam o terror diário das
ruas e um padre caminha alheio a tudo além do livro em suas mãos. Ele
caminha como que imerso em água tão densas são as palavras que lê e,
ali ao redor dele, o mundo parece outro.

Em algum lugar um radinho histérico festeja a vingança da polícia de
São Paulo e os suspeitos executados. O homem cruza a esquina da Bambina
mergulhando em uma fumaça branca e densa como talco.
“Colocaram fogo no Sesc?” pergunta uma mulher assustada.

Na TV muda – as TVs andam mudas ultimamente – um homem gordo
sacoleja colérico os braços  e o nosso mendigo continua caminhando sem
destino e distante do apocalipse dos jornais, revistas, rádios e TVs
Como todos nós.

A noite cai, os farrapos serão jogados sobre um colchão e o par de
olhos enrugados se fechará sem ter a satisfação de encontrar uma
bibliotecária que lhe entregue os jornais certos.