Esse mini conto foi escrito originalmente no Medium em agosto de 2018 inspirado no sonho de uma amiga antiga, Bridinha, por quem já li o livro Brida para escrever outro conto como prêmio por ela ter adivinhado quem era o meu avatar no Twitter no dia das crianças (príncipe Suzano e o dragão de nove cabeças).
Foto acima por Gregory Hayes on Unsplash
Já não há pequenas cidades, Coriânia já foi pequena, mas o fim do século XX foi o fim da civilização dos recônditos alheios ao mundo grande que se estende para o cosmos, onde marcas, brands, substituem crenças e sonhos.
A globalização do consumo e a absorção do mundo pela estranha dimensão chamada de Internet, uma coisa intangível que se espalha pelo ar materializando-se em telas, muitas telas, pedaços de outros países, outras pessoas, outras civilizações moldou os menores vilarejos à imagem e semelhança das mecas comerciais.
Todavia ainda há pequenez, aquela singela maneira de viver a passagem do tempo, como em Coriânia, onde Flávia e Márcia foram morar depois de abandonar os 60 anos e famílias abusivas. Vivem na mesma rua, conectadas por quatro casas, há vinte anos e deixaram para trás o que puderam da civilização apressada da megalópole onde cresceram e construíram carreira.
É um dia especial, esse que estamos olhando agora, esse fim-de-tarde-início-de-noite em que as duas amigas caminham a esmo por uma rua da minúscula metrópole, meio perdidas aproveitando que a violência ainda não foi espelhada por aquelas bandas.
A rua viu mais civilizações passarem que as leituras das duas juntas, está repleta de histórias, de alma e… um restaurante pouco antes de virar a esquina. Pelas janelas, entre as cortinas, elas percebem a luminosidade morna convidando-as a deixar a noite fria que já se avizinha.
Sem apressar o passo atravessam a grande porta de madeira que range contando segredos de outras eras e entram em um pequeno hall com um estreito púlpito atrás do qual uma jovem de cabelos escuros como a noite e sorriso claro como as teclas brancas de um piano novo sorri para elas, dois sofás e todo um museu pendurado nas paredes.
Fotos, pequenos utensílios, máscaras vienenses e quadros cuidadosamente iluminados por focos de luz suave.
— Boa noite! Sou Brida! Como vão as senhoras? Já conhecem nosso restaurante? Se quiserem esperar uns minutinhos consigo uma mesa para vocês! Uma de quatro lugares seria o suficiente?
As duas se divertem com a empolgação da jovem que não deve passar dos 40 ainda e apenas acenam com a cabeça aceitando a oferta e se entreolham sorrindo com a leveza de quem viveu a pressa e hoje, já passando dos 80, vive a tranquilidade de quem aprecia o Sol se recolhendo atrás das montanhas.
O vento começa a soprar do outro lado da porta trazendo o frio noturno que, felizmente não consegue atravessar a porta.
— Flávia, minha querida, veja se esse isqueiro sobre a mesa funciona, por favor?
— Isqueiro, Márcia? Você tem um cigarro aí? — Ela replica divertindo-se com o pedido da amiga enquanto entrega o isqueiro.
— Estamos bem na hora dos mosquitos, aqueles que nos devoram e me incomodam tanto! Quero me certificar que eles não vieram seguindo o calor aconchegante aqui do restaurante, aliás, você olhou o nome dele?
— Vamos perguntar à mocinha quando ela voltar, como se chamava mesmo? Berta?
— Brida. Era Brida, não era? — Márcia segura o isqueiro aceso firmemente enquanto vasculha os cantos escuros da confortável antessala procurando pelos pequenos demoniozinhos e seus narizes de agulha.
Flávia olha para a porta fechada com curiosidade, segura suavemente a mão da amiga direcionando-a para mais perto.
Está coberta de lindos arabescos entalhados com esmero e dedicadamente encerados. É uma linda porta.
Ao fundo Brida passa acompanhando um casal para o segundo andar, pessoas prestativas que cederam sua mesa para que as duas senhoras não tivessem que subir as escadas.
A chama do isqueiro, maliciosa e sapeca, pega carona em uma lufada de vento e salta em direção à porta que, de tão encerada, começa a reluzir com as filhas da chama sapeca, vão percorrendo e delineando o rosto de querubins, as asas de de arcanjos, os arcos do triunfo reproduzidos logo acima de uma aleia com casais de mãos dadas. Mais acima as chamas iluminam o sol sobre o Louvre, sim, há um entalhe para o Louvre na grande porta, a Europa inteira parece estar em chamas. Uma cena mais deslumbrante que assustadora.
As pequenas chamas já saltam sobre o céu estrelado na parte superior da porta quando o rosto sorridente de Brida surge entre as duas afastando-as delicadamente da Europa em chamas.
— Vocês estão bem? Não é a primeira vez que ela faz isso! Essa portinha travessa! Da última quase se espalhou pelas cortinas, então não temos mais cortinas aqui.
Brida ri, parece estar se divertindo ou talvez achando bonita a porta iluminada.
Sem parecer preocupada pega um tapete do chão e bate com ele na porta algumas vezes enquanto dá bronca como quem fala com uma criança, “ai ai ai! Vamos apagar esse foguinho logo?”
O fogo parece obedecer e nem mesmo deixa desprender da madeira a fumaça da cera queimada, os demais frequentadores sequer notam o episódio e cumprimentam calorosamente as duas amigas enquanto se encaminham para uma mesa ao canto, perto da lareira.