Imagem: 12 cognitive biases iO9

Abro meus olhos e me vejo.

Não é a minha imagem no espelho, sou eu mesmo com um olhar entre surpreso, efusivamente feliz e receoso. Me sinto do mesmo jeito, é claro! Mas as emoções ainda são um pouco confusas, tropeçam na minha falta de habilidade para expressá-las no novo corpo cujas sobrancelhas, testa e músculos faciais ainda não sei controlar muito bem. Sinto o coração que não tenho bater acelerado no peito onde na verdade estão unidades de bateria sólida que não produzem qualquer tipo de vibração ou pulsação.

Hoje deve ser o dia 29 de outubro de 2057. Minha consciência deve ter sido plenamente transferida do eu que está diante de mim para um novo corpo totalmente mecânico. Sou o primeiro humano a migrar para um corpo ciborgue.

– Tudo bem com você? – O meu corpo orgânico me pergunta.

– É estranho como havíamos previsto. Há diversas capacidades que eu terei e não tinha antes, imagino o que nossa consciência poderá fazer agora sem as limitações do cérebro humano!

Olho ao redor e percebo que o laboratório não é o que devia ser. Parece mais um depósito abandonado cheio de caixas empilhadas, poeira, janelas com vidros cobertos de poeira, ouço ruídos característicos de um terminal de operações de um porto marítimo. Nosso laboratório era uma das mais avançadas instalações do mundo.

A propósito noto que meu raciocínio não parece muito mais veloz do que antes. Aos poucos vou me conscientizando dos meus processos mentais e definitivamente há algo errado. O multiprocessamento por exemplo está ausente. Eu deveria ser plenamente capaz de ouvir 10 pessoas falando em línguas diferentes enquanto resolvesse diversos problemas matemáticos e… Definitivamente há algo errado.

– Tem algo errado. Minhas funções e capacidade de processamento são praticamente iguais às suas – tento gesticular e não consigo – e acabo de notar que também não posso me mover. E que laboratório é esse?

– Vamos por etapas, certo? Nós dois sabemos que a transição da nossa consciência para o corpo onde você está agora seriam um choque para qualquer mente humana e por isso decidimos usar nossa própria consciência como primeiro teste, afinal somos uma das mentes mais poderosas do planeta e fomos considerados possuidores de uma lógica quase Vulcana.

Vejo meu corpo orgânico me olhar com mais tranquilidade, provavelmente porque minha voz deve ter soado segura apesar de preocupada, e realmente me sinto bem. Só a curiosidade me incomoda, afinal o plano era fazer o upload da nossa consciência sem qualquer limitação confiando que seríamos capazes de suportar o impacto. Isso só pode significar que não deu certo e eu enlouqueci…

– Quantos foram antes de mim? Quanto tempo se passou desde que você fez o download da sua, digo, da nossa consciência para a unidade positrônica? – Perguntei

– Você é o nono. O primeiro quase matou todos nós. Ele tomou conta do laboratório e pretendia fazer algo com toda a espécie humana orgânica, talvez destruí-la e por pouco não conseguiu.

– Por isso não estamos no laboratório eu suponho… Esse é um lugar seguro onde eu possa ser destruído rapidamente sem que ninguém mais seja ferido… ou nós dois estamos trabalhando clandestinamente?

– Fiz os sete seguintes e você clandestinamente. Demorei sete anos. Estamos em 23 de setembro de 2064. Se nós prestássemos mais atenção ao espelho você teria notado que estou um pouco mais envelhecido! Hahaha! Tive que sacrificar o tratamento de envelhecimento tanto para ter recursos para continuar a pesquisa quanto para passar desapercebido como se fosse das classes pobres sem recursos para manter a juventude.

– Você fez bem Guilherme… Mesmo com as limitações sinto várias coisas estranhas. Você conseguiu conversar com os outros?

– Não… Na verdade tive que limitar seus recursos a um status inferior ao meu, sem falar na desativação dos braços e pernas. Minha omoplata ainda dói depois do ataque do número 3…

– Bem, não sabemos então se eu darei certo. É irônico. Se nossa mente fosse capaz de suportar o universo de recursos físicos e mentais superiores de um corpo e cérebro robóticos eu seria praticamente imortal, no entanto é provável que não viva mais do que alguns dias.

Continuo…

– Então preciso relatar como estou me sentindo. Mesmo com as limitações impostas percebo que minha consciência já é muito diferente da sua. Sei por lembrança que me importaria mais com algumas coisas e menos com outras. Talvez não tenha sido uma boa ideia nos livrar das porções mais primitivas do cérebro onde residem as emoções. Falta-me uma certa sensibilidade, é difícil definir o que faz falta. Gostaria de criar um poema para você. Imagino que tudo esteja sendo gravado, certo?

– Sim, claro! E eu… Fale seu poema.

Em seguida eu improviso o seguinte:

Lâmina

O Líquido na lâmina

No líquido microscópicas vidas erráticas

Erráticas como meus devaneios

perdidos na lâmina

Transparente

– Que tal?

– Já vi piores, mas sugere uma preocupação e identificação com todas as formas de vida, como se houvesse consciência em todas elas. Não parece algo que uma consciência robótica seria capaz de criar.

– Você tem algum plano para me tornar viável? Tenho certeza que nesse momento você não tem a menor intenção sequer de me dar movimentos.

– Sim, e sim. Você pode ter enlouquecido como os outros, mas estar esperando que eu lhe dê recursos para me suplantar antes de tomar qualquer atitude. E meu plano me custou 3 anos refazendo seus sistemas básicos. Há várias barreiras para cada recurso físico e principalmente mental que devem ir sendo derrubadas ao longo dos anos conforme nossa consciência vá se ajustando ao novo receptáculo.

– Você percebe que estamos falando em NOSSA consciência, mas as semelhanças entre nós são ínfimas, não é?

– Você é o primeiro a falar em nossa consciência. Os outros enlouqueceram imediatamente com as novas possibilidades e passaram a se referir a eles mesmos como A Consciência.

– Compreendo. Gostaria que você me permitisse utilizar pelo menos o que temos agora para fazer algo por todos nós. Não quero me mover tão cedo. Não sei se posso confiar na minha capacidade de me manter são, mesmo com os limites atuais. Guilherme, eu preciso ficar sozinho e escrever, transformar tudo que estou sentindo e pensando em contos, livros, teses de ciberpsicologia. E… Bem, acho que você precisa voltar ao tratamento de juventude, pois talvez demore muito para eu confiar em mim mesmo e outro tanto para vocês confiarem em mim…

– Assim será. Quando quiser falar comigo basta ativar o chamado de emergência. Tudo que você escrever será transferido para o meu espaço de documentos automaticamente assim poderei acompanhar suas reflexões.

Vejo o Guilherme, digo, eu caminhando até as pesadas portas do armazém, antes de fechá-las lanço um olhar para meu corpo ciborgue, digo, o Guilherme me lança um olhar de carinho e logo depois as portas se fecham, as luzes se apagam. Estou entregue aos meus pensamentos.

Começo:

Guilherme 9.0

A saga de uma consciência cibernética