Uma senhora descabelada grita apontando em direção a um trecho escuro da rua depois do qual se veem as luzes de uma clínica

“Olha! Lá vão eles!! Meu Deus! Estão indo para a clínica! Que barulho é esse de vidro quebrado? Eles estão atirando contra a clínica!! E isso agora? É gás? Estão jogando gás na clínica? Meu Deus! Vândalos! Vândalos!!”

A vários quarteirões dali, bares na praça São Salvador, no Largo do Machado e praça José de Alencar vivem uma noite comum até que as jovens pessoas que bebem e conversam sobre a peça que assistiram são avisadas por Twitter, FB e outros meios que “a coisa tá pegando” e se perguntam “Pegando onde que não vemos nada aqui?”, mas minutos depois enxergam gente correndo vindo da praça São Salvador onde os vândalos instalaram um cenário de guerra urbana.

Monumenot no centro da S?o Salvador
Monumento no centro da praça que é point da noite carioca. Fonte

Segundos depois a peça é esquecida e, perplexas com dezenas de veículos apinhados de vândalos armados, elas ecoam os gritos da senhora pouco tempo antes “Olha aquilo! Olha o tamanho daquela arma! Eles estão indo atrás das pessoas! Filhos da Puta!! Covardes!! Isso não é guerra não!!” e logo depois foram alcançadas pelas brumas lacrimogênias arremessadas contra a população da cidade.

Ninguém viu o que foi feito contra os vândalos para que eles atacassem clínicas, saíssem em perseguição de jovens de classe média e atirassem gás lacrimogênio em seus supostos opositores e quem mais morasse ao redor.

Do alto dos prédios moradores testemunham vaiando a atuação da polícia que devia enfrentar vândalos e não roubar para si esse título. Outros não podiam berrar pois, dentro de suas casas lacradas ainda eram expostos a tanto gás que sofriam crises alérgicas.

Animais… Por algum motivo muita gente se compadece mais com o sofrimento dos animais do que com o de pessoas e esses, pobres criaturas, se escondiam sob as camas ou se aninhavam no colo dos donos sem entender os olhos ardendo e os focinhos queimando.

Est?tua de Jos? de Alencar
José de Alencar durante o dia sem saber da noite que o espera… Fonte

Nós também respiramos gás, também tivemos medo das fardas que nos cercavam enquanto tentávamos conversar com os amigos em um bar. Ouvimos relatos de que onde havia pivetes assaltando não havia polícia, então esperamos passar o gás, passar a ameaça armada do estado e dissipar o risco dos assaltos e pegamos um táxi para casa.

“Vamos por aqui que acho que tem menos risco de sermos atacados pela polícia” – Digo

“Mas a polícia está só reagindo, vi como eles eram atacados por pedradas até que decidiram reagir. Bando de vândalos”

É, quem não tem acesso à Internet para ver o que está acontecendo com os amigos e um milhão de amigos dos amigos não consegue ver as ruas…

Plantar a semente da dúvida é uma arte necessária.

“Mas eu levei gás lacrimogênio e estava ali no bar onde não tinha vândalo nenhum” – digo

“Que estranho, mas deve ser uma anomalia, né?”

“Olha, pelo jeito tem muita anomalia acontecendo pois tive amigos que foram atacados pela polícia do mesmo jeito na Lapa e até em clínicas eles jogaram gás lacrimogênio”

“Mas foi porque os vândalos foram se esconder lá, né?”

“O senhor acha que, para pegar um vândalo que quebrou um vidro é legal sair jogando gás na população toda e, pior ainda, em gente doente no hospital?”

“Puxa… Só agora tô ouvindo isso…”

Falo o tempo todo com a tranquilidade de um narrador de documentário, mas o taxista começa a se exaltar falando contra o governador, o prefeito e os políticos em geral. Numa pausa aproveito para regar a semente da dúvida que já estava plantada.

“Sabe, tenho amigos que são jornalistas treinados em quem posso confiar. Eles foram lá no meio dos vandalismos e viram gente revoltada quebrando coisas depois de ser atacada pela polícia, mas também viram grupos bem organizados quebrando as coisas metodicamente”

“Ah! É! Mas foram pagos por esses vermelhos!!” e mostra a Veja que estava atocaiada no banco do carona (isso explica muita coisa)

Ele tinha acabado de falar mal dos políticos “azuis”, mas busca a culpa pelo vandalismo invisível que provoca o vandalismo muito visível da polícia nos vermelhos. Aproveito para completar com o adubo…

“Será que foram eles mesmos? Será que não foi o próprio governo para tentar desmoralizar as pessoas que estão falando mal dele?”

Chegamos ao nosso destino, o taxista sorridente me agradeceu e disse que ia se recolher para descansar: está plantada a semente da dúvida. Uma, umazinha à toa, mas quem sabe o que nasce da semente da dúvida? Muitas vezes o que surge são aquelas marias-sem-vergonha que se espalham mais rápido que mato florindo a estrada que leva ao futuro.

Imagem: portal R7