É bem provável que você que está lendo este post não tenha presenciado os anos 70. Também é bem possível que você não se lembre. A memória é facilmente afogada pelo excessivo fluxo de estímulos e informação que nos atravessa a todo momento desde que a Internet, os streamings, as redes socais e o firehosing da estratégia política para nos confundir entraram em curva ascendente já há umas boas duas décadas.
Felizmente existem âncoras capazes de nos transportar no tempo e restaurar partes da memória que ficaram jogadas pelos cantos das nossas mentes. Além disso o acesso limitado que as crianças tem às informações, principalmente na era pré-conectada, atrapalha bastante.
Há pouco tempo passei umas semanas usando uma bandeira do Brasil logo depois da minha @ no Twiter. A bandeira e algo como “antifascista” para evitar dúvidas.
É capaz de você estar lendo este post em uma ou duas décadas e não saber, ou não lembrar, que movimentos fascistas usavam a bandeira do Brasil como símbolo na transição dos anos 10 para os 20 do século XXI e que um dos movimentos de reação foi não permitir que símbolos nacionais fossem sequestrados por esses grupos… Sequestro de símbolos, aliás, que é uma estratégia antiga de fascismos e totalitarismos que distorcem culturas que estão tentando dominar (pesquise Tupã e colonização).
Para muita gente o patriotismo faz sentido e não há relação entre ele e o nacionalismo, afinal torcemos por nosso país nos Jogos Olímpicos, Copas do Mundo e nas discussões políticas, mas não para mim.
Usar a bandeira no meu perfil me incomodou muito! Me fez pensar em patriotismo e acabei achando uma corrente de memórias que me levava a uma âncora fixada em 1978. Eu tinha 11 anos de idade, estudava em um colégio de elite no Rio de Janeiro. Ainda era um tempo dominado pela ditadura, grupos de extermínio que controlavam as periferias, como o Mão Branca e o cuidado ao andar nas ruas da rica Copacabana pois os assaltos eram frequentes ainda que raramente os víssemos nos jornais ou TVs.
A âncora me leva diretamente para a multiquadra esportiva do Sacre Couer de Marie numa manhã ensolarada conversando com uma amiga que defendia apaixonadamente o amor à pátria. Não era estranho, afinal tinha até aula de Moral e Cívica para nos ensinar a amar nosso país e nenhuma rádio tocaria “viver pela pátria, morrer sem razão”.
É bem possível que eu tenha escutado Imagine de John Lennon, não lembro de onde eu tirei a ideia de que devíamos ser todos como um só planeta. Aos 11 anos estava lendo Senhor dos Anéis, mas ainda não tinha lido muitas coisas. Creio que só uns anos depois fui ler Demian, que reforçaria minha rejeição ao patriotismo.
Naquele dia com a amiga, cujo nome ou rosto estão perdidos por enquanto, não lembro do que ela disse ou mesmo do que eu argumentei, mas recordo nitidamente do que eu sentia, de como achava que ela não estava pensando no que dizia, que estava somente convencida pelo que “todo mundo pensa” ou que seria “o nosso papel na sociedade”. O que quer que eu tinha dito foi na tentativa de explicar que países nos dividiam, que a gente devia buscar o que temos em comum uns com os outros. Duvido que naquele tempo eu pensasse em admirar as diferenças entre nós por causa das nossas culturas e provavelmente achava que devíamos buscar a fraternidade além das diferenças…
E o que tudo isso quer dizer? Francamente, não sei. Provavelmente é mais uma daquelas coisas que achamos que nos torna especiais, mas que na verdade passavam pelas cabeças de muitas outras crianças. Talvez a amiga tenha concordado comigo, não lembro bem, talvez muitos colegas pensassem o mesmo, mas raramente falávamos disso entre partidas de enduro, river raid ou os deveres de casa.
O que sei é que muitas águas passaram, que o mundo e as ideias de uma jovem pessoa de 11 anos são muito diferentes hoje, que, por mais que a gente ache que o mundo não está mudando, ou não está mudando rápido o bastante, ele muda sim… E muito mais rapidamente e intensamente do que parece. O problema é que é difícil perceber quando nossas âncoras raramente nos levam para mais do que 5 anos no passado.
Busque suas âncoras! Elas são essenciais para perceber não só como o mundo muda, mas como nós também mudamos!
Photo by Marília Castelli on Unsplash – Protesto contra o presidente Jair Bolsonaro – Largo do Batata – SP
Creio que começei a ler Demian pelos vinte anos, logo após minha primeira epifania. Reencontrei agora com as mudanças todas desse período, nova chance para ele!
Legal vc falar de Demian! Só em 2018, quando reli, notei o impacto que ele teve na formação do meu jeito de ver o mundo e a mim mesmo! É bem capaz dele ser ainda mais útil para lidar com o período que vivemos do que era quando li pela primeira vez!